quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Mural da UNEMAT: Projeto ArtSet-Comunicação Social

Em plena era do filme falado, Chaplin faz a obra prima do filme mudo.
Dois anos depois de Hitler assumir o posto de Fuhrer, três anos depois da grane crise econômica que abalou o mundo capitalista, e um ano antes de Vargas criar o Estado Novo no Brasil, o filme de Chaplin revela mais que a história nos conta.
acusaram Chaplin de ser comunista e que Tempos Modernos fosse um libelo ao movimento socialista internacional. Durante muito tempo eu também pensei assim, porém, agora revendo o filme, percebo que todo sonho do vagabundo e da sua companheira é a realização individual. Não desenjam ou batalham por um sonho coletivo. De certa forma, esta é a ótica burguesa, não a ótica socialista.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

As ingerências inglesas na África e as transformações no comércio atlântico: o caso das cidades de Bonny e Ajudá


Por João Henrique Fernandes Leite
*Graduando em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e
bolsista PIBIC/CNPq.Contato: joaohfl@hotmail.com




Resumo:


Este trabalho consiste em analisar as ações inglesas nas cidades de Ajudá e Bonny, que estão situadas na baía do Benin e do Biafra respectivamente, e eram importantes entrepostos comerciais para as embarcações vindas da Europa e das Américas. Tais ações, que causaram impactos políticos econômicos e sociais para ambas as cidades.

Palavras-chave: África – Comércio Atlântico – Inglaterra





I) Ajudá e Bonny antes do Século XIX
Os franceses e ingleses interessavam-se mais por produtos como os couros, os paus de tinta, a malagueta, as pimentas, o marfim, as gomas, o azeite-de-dendê, o almíscar ou âmbar, porém não deixavam de comprar alguns escravos.[1]
(Alberto Costa e Silva)


As Relações Políticas e Econômicas de Ajudá e Bonny: do lucrativo comércio transatlântico escravista aos impactos políticos e sociais

Durante as últimas décadas podemos notar na historiografia uma grande atenção para os estudos africanos. Esse estudo é impulsionado, sobretudo, pela temática da escravidão. A escravidão, sem dúvida alguma, consistiu em uma das instituições mais importantes da história, já que esteve presente em diversos lugares do mundo. Sendo encontrada desde a antiguidade até aos tempos mais contemporâneos.



A escravidão é um período da história universal que afetou todos os continentes, simultaneamente às vezes, ou sucessivamente. Sua “gênese” é a soma de tudo que adveio durante um tempo indeterminado, em vários lugares. O tráfico africano de escravos para o Maghreb, e depois para a Europa, que está na origem da escravidão na África Negra, apenas substituiu tráficos que subsistiram durante séculos na Ásia, no continente europeu em torno do Mediterrâneo. [2]

Entretanto, foi na África que a escravidão encontrou, em diversas vezes, suas relações mais íntimas e limítrofes. Onde promoveu mudanças políticas, econômicas e sociais[3] – sendo elas, bruscas ou não – nas sociedades africanas.
O tráfico de escravos foi também uma característica marcante do continente africano, já que ele promoveu estreitos laços comerciais com as Américas e com a Europa. Que, de acordo com Mariza Soares, estabeleceu um vínculo entre a História das Américas, da Europa e da África[4].
Vejamos agora, as relações comerciais escravistas de duas cidades que, por sua vez, destacaram-se diante da dinâmica do comércio atlântico. Consolidando-se por serem importantes entrepostos para os navios europeus, em busca de azeite-de-dendê e/ou óleo de palma, de ceras, de resinas, de madeiras, de marfim, e de escravos.[5] São elas: Ajudá e Bonny, situadas na Baía do Benim e na Baía do Biafra, respectivamente.

A) Ajudá: supremacia no tráfico escravista

Para Pierre Verger[6], Ajudá se tornou um dos entrepostos comerciais mais importantes da África. Sendo responsável pelo embarque de inúmeros escravos destinados, principalmente, às Américas. Tal destaque alcançado através do comércio negreiro – para Elisée Soumonni[7] – é iniciado a partir da década de 1670.
Soumonni comenta que o meio ambiente natural de Ajudá foi determinante para seu sucesso comercial, já que, Ajudá estava localizada à margem das lagoas e bastante próximo ao litoral atlântico. Um importante fator que contribuiu para a prosperidade econômica de Ajudá ocorreu em 1671, quando os franceses deslocaram o lucrativo entreposto comercial que haviam estabelecido em Ofra para o porto de Ajudá, Glehue, até então, pertencentes ao reino de Huedá.

No fim do século XVII, o porto de Ajudá havia ganho a parada:
tornara-se muito mais importante como exportador de escravos do que Aladá.
Ironicamente, porém, provinha do Aladá o grosso dos cativos que se vendiam em
Ajudá, gerados pela expansão do Daomé, pelas repetidas guerras entre as cidades
costeiras e pelo banditismo de uma série de warlords ou senhores-da-guerra que o
tráfico de escravos ajudara a multiplicar na região.
Não demorou muito para
que se fossem desatando os laços de vassalagem, fossem esses apertados ou
frouxos, entre Ajudá, Tori, Popó Grande e Aladá.
[8]

Posteriormente, em 1727, Ajudá é conquistada pelo poderoso reino escravagista e expansionista do Daomé. Que para Soumonni, “viria a confirmar sua posição inicial de principal porto do tráfico negreiro na região”[9].

Daomé utilizava Uidá como seu principal porto, como fez Oió até
a última quarta parte do século. Uidá permaneceu como principal porto e pode ter
sido responsável por quase um milhão de escravos do final do século XVII até o
início do século XIX.
[10]


Após a conquista, um dos principais objetivos das autoridades do Daomé era estabelecer a administração e o controle comercial e estratégico de Ajudá. Com isso, a dominação daomeana introduziu diversas mudanças administrativas em Ajudá. Como exemplo, em 1733, através da nomeação de um governador de província para residir em Ajudá, o iogovã – que significa “Chefe dos Homens Brancos”.

O iovogã foi, sem sombra de dúvida, a figura central da máquina administrativa de Ajudá, no duplo papel que o lugar desempenhava como província integrada no sistema político daomeano e porto de comércio europeu.[11]

Mas é também verdade que a posição do iovogã era ambígua e delicada. Como de outros funcionários de Uidá, esperava-se que o iovogã fosse digno de confiança, capaz de atrair o máximo de receita possível para o rei, sem destruir o comércio, e inteiramente isento da tentação de acumular fortuna pessoal à custa dos interesses da realeza. Na história do Daomé, são fartos os indícios de que essas condições eram difíceis de satisfazer. Como observou Akinjogbin, o excesso de zelo nos serviços prestados ao rei podia levar à extorsão e fazer com que os dirigentes das feitorias européias de Uidá se queixassem do iovogã ao rei. Por outro lado, a incapacidade de satisfazer o monarca podia dar margem à suspeita de que o iovogã era incompetente ou estava acumulando fortuna pessoal. Qualquer dessas duas suspeitas podia levar à pena de morte.[12]

Como podemos perceber, o cargo do iovogã era relativamente instável, pois estava submetido ao poder real. Já em 1818, com Guezo chegando ao poder o cargo de iovogã será substituído pelo de chachá que, por sua vez, conhecerá uma significativa estabilidade.

B) A cidade de Bonny e suas relações atlânticas

Assim como Ajudá, a cidade de Bonny tornou-se um dos maiores entrepostos comerciais da África Ocidental. Estando na Baía de Biafra, essa cidade transformou-se em uma das cidades de maior atividade comercial da região do Delta do Níger. Tendo o tráfico de escravos e o comércio de óleo de palma como suas principais atividades comerciais.
Entretanto, para alcançar esse sucesso comercial a cidade de Bonny teve que passar por diversas transformações. Segundo o historiador Ebiegberi Joe Alagoa, o povoamento dessa região se iniciou por volta do século XII, e foi intensificado a partir do século XV devido à migrações seqüenciais de regiões interioranas próximas em direção às áreas litoraneas. Tais migrações promoveram uma mudança na organização produtiva de uma tradicional vila fazendeira do interior para as vilas de pescadores do litoral, por causa das diferenças geográficas entre a regiões. De acordo com Alagoa, Bonny também motivou mudanças na configuração institucional de governo e na organização da sociedade, que acarretou nas transformações das vilas em cidades estado, favorecida principalmente pelo comércio interno de longa distância, e não pelo contato comercial atlântico com os europeus.[13]
Alexander Gebara analisa brevemente essas transformações nos âmbitos políticos, econômicos e sociais em Bonny. Demonstrando que tais mudanças ocorreram, principalmente, após a migração para o litoral.
Nas vilas fazendeiras a autoridade política estava submetida a assembléia geral (em que todos os membros masculinos adultos faziam parte) que, por sua vez, era presidida pelo mais velho dos membros da linhagem fundadora da vila, o amanyanabo; que além da autoridade da assembléia, possuía direito à grande parte das terras cultiváveis. Mas após o deslocamento para as áreas litorâneas, houve uma consecutiva intensificação com o comércio atlântico, no decorrer do tempo. Tal intensificação do comércio provocou mudanças no sistema de linhagens (House sistem), tornando-as intimamente ligadas a esse comércio.[14]

Como resultado do desenvolvimento do comércio atlântico e das ondas migratórias seqüenciais, a região do Delta do Níger tornou-se um espaço muito povoado. Constituiu-se então uma região especializada no comércio, com um excedente populacional que veio a suprir parte da demanda escrava com o incremento do tráfico atlântico, principalmente a partir do século XVII.[15]

Paul Lovejoy afirma que o comércio de escravos na Baía de Biafra foi extremamente importante para a cidade de Bonny, tornando-a uma das principais cidades exportadoras de negros para as Américas, sobretudo, no século XVIII.

As exportações anuais subiram de uma média de pouco mais de 1.000 na primeira década do século, alcançando 3.000 - 3.500 por ano nas décadas de 1720 e 1730. O número de escravos exportados triplicou para quase 10.000 por ano nas décadas de 1740 e 1750, subindo para 15.000 na década de 1760, e chegando ao ápice em 17.500 por ano na década de 1780. Esse rápido aumento de escravos quase abasteceu inteiramente os navios ingleses, que eram responsáveis por 85 por cento dos carregamentos de escravos na baía de Biafra.[16]

Entretanto, a partir de meados do século XIX – principalmente da década de 1850[17] – o comércio de escravos sofreu uma crise devido às pressões inglesas para o fim do tráfico atlântico. Apesar dessa crise, Bonny continuou a prosperar nos oitocentos devido – sobretudo – ao óleo de palma. Produto que muito interessava aos ingleses.


II) Os Ingleses na África no Século XIX
O Oitocentos é também o século em que o Reino Unido procura fazer do Atlântico um mar britânico; o século em que se destrói o comércio triangular entre a Europa, a América e a África e em que se desfazem as ligações bilaterais entre os dois últimos continentes; e o século em que começam a integrar-se na comunidade mundial, ainda que de modo imperfeito, as nações africanas, até então fora das grandes rotas do caravaneiro e do navegador. [18]
(Alberto Costa e Silva
)
Os interesses ingleses nas baías de Benim e Biafra

Como sabemos a Inglaterra no século XIX promoveu uma série de ações contra o tráfico de escravos. Para Alberto da Costa e Silva, vários fatores contribuíram para a campanha contra o tráfico, são eles:

Em primeiro lugar, o sentimento humanitário, que se opunha à iniqüidade do regime escravocrata. Em segundo lugar, a crença européia numa necessária evolução histórica, semelhante para todos os povos, e no conseqüente dever de procurarem os mais adiantados conduzir os mais atrasados pelos caminhos do progresso. Em terceiro lugar, o renascido zelo pela catequese cristã. Em quarto, o prestígio da teoria da liberdade de comércio. Esse denso tecido ideológico fez com que a campanha contra o tráfico e pela abolição assumisse dimensões quase religiosas e viesse a justificar o renascer de uma vontade colonial na Europa.[19]

Mas certamente, os ingleses não tinham apenas a pressão da opinião pública ou razões puramente humanitárias para declarar a ilegalidade da escravidão, e muito menos apenas de caráter religioso. Como o próprio George Canning[20] mencionava em seus despachos, a Inglaterra possuía importantes interesses econômicos para incentivar o fim da escravidão. Podemos citar como exemplo: a questão do açúcar. Pois com o fim da proibição inglesa ao tráfico para as suas colônias nas Antilhas, que eram grandes produtoras de açúcar, ocasionou a diminuição da mão-de-obra, e a utilização de uma mão-de-obra assalariada, causando o encarecimento do açúcar inglês produzido nesta colônia. Logo, eles não tinham como competir com o açúcar brasileiro, cuja produção era realizada pelo trabalho escravo.
Sendo assim, era nítido o interesse dos ingleses por alguns produtos africanos, destacando-se entre eles o azeite-de-dendê. No teve o desenvolvimento produtivo incentivado pelos britânicos com o combate ao tráfico.
A fim de atender à demanda européia e por estímulo daquelas mesmas nações que haviam combatido o tráfico transoceânico de escravos, expandiu-se na África uma agricultura de exportação ­– de óleo de palma, de amendoim, de cravo, de pimenta, de café, de cacau, de sisal – e desenvolveram-se grandes plantações do tipo americano (plantations).[21]
Ou seja, a presença inglesa na África no século XIX, influenciou as sociedades africanas nas relações políticas, econômicas e sociais, utilizando como principal ferramenta de ação a sua poderosa esquadra.

A presença do esquadrão anti-tráfico britânico, plantado nos flancos ocidentais, levava s negreiros a uma infinidade de artimanhas: quando desviavam suas rotas marítimas, substituíam os portos mais tradicionais, como Uidá ou Ajudá, por exemplo, por embarcadouros recém-formados e menos conhecidos, por praias e enseadas ermas, e ainda quando definiam preferências por tipos mais leves de embarcações. [...] Conjuntura que, supõe-se também levou ao aumento da mortalidade no interior dos negreiros, pois, diante da ilegalidade do comércio e
da ausência de uma legislação normativa, registrava-se rotineiramente a superlotação dos navios.
[22]

A) As ações inglesas no Daomé

Como já vimos antes, a supremacia do reino do Daomé na baía do Benim estava baseada no tráfico de escravos e no comércio externo. Devido a isso, os ingleses tiveram uma atenção especial nessa região. Não só para combater o tráfico, mas também para conseguir vantagens comerciais e concorrer com sua principal rival no comércio de azeite-de-dendê na região, a França.
A cidade de Ajudá foi um dos principais cenários dessas relações inglesas no Daomé no século XIX. Nesse mesmo período – mais precisamente em 1818 – Guezo assume o poder no Daomé com a ajuda vital de Francisco Félix de Souza, que por sua vez, fora essencial na administração do novo rei do Daomé.

Francisco Félix de Souza foi um baiano de notável inteligência, incomum habilidade e grande encanto pessoal, no trato com os brancos e com os grandes do Daomé. Tendo chegado à África sem um tostão, em pouco tempo tornou-se um poderoso chefe africano e um dos maiores mercadores de escravos da história. Mestre de um comércio fundado na violência e na crueldade, era, contudo, tido, até mesmo por seus adversários, como um homem generoso e desprendido, padrinho líder e protetor dos ex-escravos retornados do Brasil e que se instalaram na costa africana.[23]

Já nomeado chachá da cidade de Ajudá por Guezo, Félix de Souza teve um papel fundamental nas relações comercias no Daomé, sobretudo, no comércio de escravos e de azeite-de-dendê. E, de acordo com Soumonni, Félix de Souza era tido pelos ingleses como um dos principais fatores pelo fracasso de sua pressão para com o rei do Daomé.
Francisco Félix de Souza também deixava clara sua posição diante da rivalidade entre a França e a Inglaterra ao apoiar as transações comerciais francesas em Ajudá. E tinha como principal motivo para não ir de encontro aos interesses comerciais britânicos, o fato dos ingleses pressionarem Guezo para o fim do tráfico de escravos.
Tal rivalidade entre esses dois países, promoveram diversas missões diplomáticas inglesas ao reino do Daomé, a fim de obter privilégios comerciais e persuadir o rei Guezo a desistir do tráfico negreiro. Com isso, os ingleses visavam prejudicar a casa comercial de Victor Régis, que havia fundado sua fábrica de azeite-de-dendê em Ajudá que, por sua vez, utilizava o trabalho escravo e, era acusada pelos ingleses de incentivar e até praticar o comércio ilegal de escravos.[24] Mas a França não deixou por menos, também enviou à Abomé (capital do reino do Daomé) a missão diplomática de Auguste Bouet com o objetivo de também conseguir vantagens comerciais e contestar os interesses ingleses.
Devido ao sucesso da missão de Bouet e convencidos que Guezo não suspenderia o tráfico em Ajudá, os ingleses fizeram um bloqueio naval a vários portos da baía do Benim.
O bloqueio promovido pela poderosa esquadra britânica proporcionou grandes prejuízos ao reino do Daomé, e tomando ciência disto, Guezo resolve atender as exigências britânicas e assinar um tratado estabelecendo o fim da exportação de escravos.

A rivalidade entre a França e a Grã-Bretanha é uma ilustração de como a presença européia exerceu impacto na administração de Uidá durante o período abolicionista, num grau que não havia ocorrido durante o século XVIII. Na cruzada anti-escravagista, somente a Grã-Bretanha dispôs-se a adotar medidas severas, como o bloqueio do principal porto comercial do Daomé. Apesar do efeito limitado dessas medidas sobre o próprio rei, elas foram uma indicação da
incapacidade de seus agentes de controlarem com eficiência os comerciantes europeus de Uidá, especialmente aqueles que podiam contar com um respaldo sólido por parte das autoridades de seus países de origem.
[25]

Devido a tais imposições inglesas, o tráfico negreiro começou a entrar em crise no decorrer dos anos, promovendo simultaneamente a ascensão do azeite-de-dendê como principal produto na pauta de exportações daomeanas.
Em suma, muitos historiadores afirmam que a Inglaterra promoveu a transição do “comércio ilegal” (tráfico de escravos) para o “comércio legal” (azeite-de-dendê, amendoim, dentre outros produtos). A transição para este comércio promoveu o aumento da escravidão na economia interna africana. Isto é, os escravos estavam cada vez mais inseridos nas áreas de produção de azeite-de-dendê, amendoim, nozes de cola, ouro, borracha e outras mercadorias. Já a demanda de mão-de-obra escrava, variava em relação a cada produto e entre diferentes áreas de produção, mas é importante ressalvar, que a escravidão e a economia estavam intimamente relacionadas. [26]

B) As ações inglesas em Bonny

O grande interesse inglês pelo lucrativo comércio de palma, designou uma série de transformações políticas em Bonny. Sendo assim, as ações inglesas influenciaram diretamente na administração da cidade.
Quando o rei de Bonny – Opobu Pepple – em 1830 morreu, seu herdeiro William Pepple ainda não tinha idade suficiente para assumir seu cargo. O que proporcionou a escolha de um regente temporário – Madu, ex-escravo da casa Pepple – que viria a morrer três anos depois. Através disso, o filho de Madu, Alali, assumiu em seu lugar em detrimento do herdeiro legítimo. Essa disputa pelo poder acarretou uma divisão de opiniões em Bonny, uma parcela da população queria a permanência de Pepple, já os comerciantes e outros grupos, apoiavam Alali que, por sua vez, tornou-se o rei de Bonny.[27]
Entretanto, Alali não iria permanecer por muito tempo governando Bonny. Já que o mesmo reagiria contra uma intervenção inglesa em seu porto, que causou o aprisionamento de um navio e um comandante inglês; que originou ações explícitas por parte da esquadra inglesa. Conseqüentemente, os ingleses instauraram William Pepple como rei de Bonny e o obrigou a fazer concessões às pretensões políticas e comerciais britânicas.[28]
Enquanto isso, o comércio de óleo de palma em Bonny vinha crescendo cada vez mais ao passar dos anos no século XIX. De acordo com Gebara, “por volta da década de 1830, esta localidade respondia por aproximadamente um terço do volume total de óleo de palma exportado por toda a costa ocidental africana[29].

As exportações de azeite-de-dendê [na Baía de Biafra] cresceram espetacular-mente, subindo de cerca de 3.000 toneladas em 1819 para quase 8.000 toneladas em 1829 e para 12.800 toneladas em 1839. Em meados da década de 1850, o volume chegou a 24.000 toneladas por ano e alcançou 41.000 toneladas anualmente na década de 1860.[30]

Já o comércio de escravos continuava a existir, ainda que, em volume diminuído. Isto é, Pepple não estava disposto a cumprir o tratado que havia firmado com a Inglaterra, embora o mesmo também não tenha cumprido sua parte no acordo, deviam pagar 2 mil dólares ao ano à Bonny durante 5 anos.
As missões diplomáticas em Bonny também foi um fator determinante para o sucesso comercial inglês na baía de Biafra. Sobretudo, após o envio do primeiro cônsul inglês John Beecroft para as baías de Benim e de Biafra. Em 1854, esse mesmo diplomata acabou depondo Pepple e enviando-o para o exílio, onde passou parte deste em solo inglês.
O exílio de William Pepple originou uma desorganização política e comercial em Bonny, estabelecendo assim, um sentimento anti-britânico que acarretou resistências africanas contra as imposições inglesas em Bonny. Por isso, sete anos depois, Pepple foi reempossado como o rei de Bonny.
Outro diplomata que causou problemas a Pepple foi cônsul Richard Francis Burton. Segundo Alexander Gebara, a administração de William Pepple era relativamente limitada, principalmente após a sua volta do exílio, já que o rei estava com suas relações comerciais enfraquecidas ocasionado pelo seu afastamento. E para piorar a situação de Pepple, Burton enviou inúmeras correspondências à Inglaterra criticando a administração dele.
Gebara aponta também para a fundação de uma nova cidade, Opobo, que superaria posteriormente a própria cidade de Bonny no comércio de óleo de palma. Pode-se afirmar, que uma das causas para o surgimento dessa cidade é decorrente do enfraquecimento das influências políticas e comerciais do rei William Pepple. O responsável pela fundação dessa cidade foi o ex-escravo Jaja, que fora comprado por Alali.

Um escravo, comprado na sua juventude em um mercado do interior, chegou até mesmo a dirigir os estabelecimentos comerciais mais bem-sucedidos em Bonny, e quando foi colocado em uma difícil posição política, deslocou o seu séqüito para um novo local em Opobo e tornou-se o governante daquela cidade. Esse homem, Jaja, alcançou durante uma simples existência um transformação social de um humilde menino escravo de ibo a um poderoso governante, possuindo mais de mil escravos, incluindo escravos que tinham eles próprios grandes propriedades.[31]

Com isso, podemos perceber as transformações nas estruturas políticas, econômicas e até mesmo sociais causados pela constante intervenção inglesa na região.





III) Conclusões


A Inglaterra aspira ao domínio universal da Ásia, assim como, pelas colonizações de guerra que vai empreendendo na África, se deve supor que aspira ao senhorio absoluto desta grande região. [32] (Cunha Matos – 2 de julho de 1827)


As semelhanças Ajudá entre Bonny

Através desse panorama das cidades de Ajudá e Bonny, podemos apontar algumas diferenças e semelhanças entre as mesmas. Uma dessas diferenças é em relação à organização política local. Ajudá estava submetida ao poderoso reino escravista do Daomé; enquanto Bonny gozava de uma política independente, constituindo-se como uma cidade-estado.
Já as semelhanças entre essas cidades são mais nítidas. Podemos citar, por exemplo: a grande importância dos portos de Ajudá e Bonny para as suas respectivas regiões e a relevância comercial do tráfico de escravos para ambas. As pressões, ações e influências inglesas exercidas nessas cidades, também são de suma importância; pois proporcionou as mesmas, grandes transformações nas esferas políticas, econômicas e sociais, originados pela introdução do “comércio legal” – sobretudo, do óleo de palma – e pela coibição do tráfico atlântico nessas cidades.
Em suma, Londres desejava assumir uma posição de primazia mercantil no continente, sem gastar em combate vidas humanas, sem despender dinheiro além da linha das praias, sem assumir responsabilidades coloniais. A Inglaterra conseguiu em parte seus objetivos devido principalmente ao seu poderio naval, que garantia sua preponderância econômica nos litorais, nos rios e nos portos. Entretanto, a pressão ambiciosa dos interesses de seus comerciantes, o zelo de seus cônsules, os brios dos comandantes de sua marinha e a contestação à sua presença nas costas da África por outros países europeus – sobretudo pela França sua rival –, fariam com que o governo britânico assumisse encargos que buscara inutilmente evitar.


Bibliografia:

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Outras fontes:

Anais do Parlamento Brasileiro: Câmara dos Senhores Deputados, Segundo Ano da Primeira Legislatura. Sessão de 1827, tomo 3, p. 12.

[1] SILVA, Alberto da Costa e, A Manilha e o Libambo: a África e a escravidão de 1500 a 1700. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002. p. 461.
[2] MEILLASSOUX, Claude. Antropologia da Escravidão: o ventre de ferro e dinheiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
[3] Claude Meillassoux discute em sua obra, a produção e o consumo dos escravos nas sociedades africanas e, sua consecutiva vinculação ao mercado externo no Atlântico. Ver: MEILLASSOUX, Claude. Antropologia da Escravidão: o ventre de ferro e dinheiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
[4] SOARES, Mariza de Carvalho (org.). Rotas atlânticas da diáspora africana: da Baía do Benim ao Rio de Janeiro. Niterói: EdUFF, 2007. p. 65.
[5] SILVA, Alberto da Costa e, Um rio Chamado Atlântico: a África no Brasil e o Brasil na África. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: Ed.UFRJ, 2003. p. 40.
[6] VERGER, Pierre. Fluxo e Refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo do Benim e a Bahia de Todos os Santos dos séculos XVII a XIX. 3ªedição. São Paulo: Corrupio, 1987.
[7] SOUMONNI, Elisée. Daomé e o mundo Atlântico. Sephis/UCAM, Amsterdã/Brasil, 2001. p. 39.
[8] SILVA, Alberto da Costa e, A Manilha e o Libambo: a África e a escravidão de 1500 a 1700. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002. p. 543-44.
[9] SOUMONNI, Elisée. Daomé e o mundo Atlântico. op. cit., p. 37
[10] LOVEJOY, Paul E. A escravidão na África: uma história de suas transformações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. p. 102.
[11] SOUMONNI, Elisée. Administração de um porto do Tráfico Negreiro: Uidá no século XIX. In: Daomé e o mundo Atlântico. Sephis/UCAM, Amsterdã/Brasil, 2001. p. 37
[12] Ibidem. p.41 e 42.
[13] ALAGOA, E. J. The Development of Institutions in the States of the Eastern Niger Delta. in:
The Journal of African History. vol. 12, no 2, 1971, pp. 269-278.
[14] GEBARA, Alexander Lemos de Almeida. Negociação e Resistência na cidade de Bonny no século XIX: o caso do rei William Pepple. Revista de História (USP), v. 1, p. 97-143, 2006.
[15] Ibidem. pp. 128 e 129.
[16] LOVEJOY, Paul E. A escravidão na África: uma história de suas transformações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. p. 105.
[17] Existe um debate em relação a crise do comércio escravo na baía do Benim e de Biafra, devido a pressões inglesas para o fim do tráfico. Adotei a data de 1850, baseando-me em:LOVEJOY, P. and RICHARDSON, D. The initial ‘crisis of adaptation’: the Impact of British Abolition on the Atlantic Slave Trade in West Africa. In: LAW, R. From Slave Trade to ‘Legitimate’ Commerce, the Commercial Transition in Nineteenth Century West Africa. Cambridge: Cambridge University Press, 1995, pp. 32-56.

[18] SILVA, Alberto da Costa e, Um rio Chamado Atlântico: a África no Brasil e o Brasil na África. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: Ed.UFRJ, 2003. p. 53.
[19] Ibidem. p. 15.
[20] George Canning (11 de Abril de 1770 - 8 de Agosto de 1827) foi um político britânico, que serviu como secretário de estado dos negócios estrangeiros e, brevemente, como primeiro ministro do Reino Unido.
[21] SILVA, Alberto da Costa e, Um rio Chamado Atlântico: a África no Brasil e o Brasil na África. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: Ed.UFRJ, 2003. p. 64.
[22] RODRIGUES, Jaime. De costa a costa: escravos marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola ao Rio de Janeiro (1780-1860). São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
[23] SILVA, Alberto da Costa e, Francisco Félix de Souza: mercador de escravos.. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: Ed.UERJ, 2004. (4ª capa)
[24] SOUMONNI, Elisée. Administração de um porto do Tráfico Negreiro: Uidá no século XIX. In: Daomé e o mundo Atlântico. Sephis/UCAM, Amsterdã/Brasil, 2001. p. 44.
[25] Ibidem. p. 46.
[26] De acordo com Paul Lovejoy, a designação de “comércio legal” está reservada ao azeite de dendê e ao amendoim, não ao ouro e às nozes de cola. Ver: LOVEJOY, Paul E. A escravidão na África: uma história de suas transformações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. p. 253.
[27] GEBARA, Alexander Lemos de Almeida. Negociação e Resistência na cidade de Bonny no século XIX: o caso do rei William Pepple. Revista de História (USP), v. 1, p. 97-143, 2006. p.131.
[28] Ibidem.
[29] Ibidem. p. 135.
[30] LOVEJOY, Paul E. A escravidão na África: uma história de suas transformações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. p. 225.
[31] LOVEJOY, Paul E. A escravidão na África: uma história de suas transformações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. p. 273.
[32] Anais do Parlamento Brasileiro: Câmara dos Senhores Deputados, Segundo Ano da Primeira Legislatura. Sessão de 1827, tomo 3, p. 12.

O LITORAL SUL FLUMINENSE NO SÉCULO XIX: FORMAÇÃO, APOGEU E DECADÊNCIA DE UMA ECONOMIA PORTUÁRIA

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA

POLIS- LABORATÓRIO DE HISTÓRIA ECONÔMICO-SOCIAL
SEMINÁRIO PORTOS E
CIDADES: ECONOMIA, SOCIEDADE E AS ARTICULAÇÕES DO BRASIL COM O MUNDO ATLÂNTICO

TRABALHO: O LITORAL SUL FLUMINENSE NO SÉCULO XIX: FORMAÇÃO, APOGEU E
DECADÊNCIA DE UMA ECONOMIA PORTUÁRIA


AUTOR: GUSTAVO ALVES CARDOSO MOREIRA
Mestre em História pela Universidade Federal Fluminense.

Resumo:
As municipalidades do litoral sul fluminense, ao longo das primeiras décadas do século XIX, passaram por um significativo processo de crescimento econômico e demográfico, graças a uma localização estratégica que permitia a exportação de café e a receptação de africanos. Porém, o fim do tráfico, a perda de cativos para regiões mais dinâmicas e a expansão das ferrovias determinaram um declínio que se estendeu por vários decênios.

Abstract:
The southern coastal municipalities of Rio de Janeiro, for the first decades of the nineteenth century, went through a significant process of economic and population growth, thanks to its strategic location that allowed the exportation of coffee and coming-in of Africans. However, the end of trafficking, the loss of captives to more dynamic regions and the expansion of the railroads led to a decline that extended for decades.

Palavras-chave:
portos- sul fluminense- negócios

O litoral sul fluminense no século XIX: formação, apogeu e decadência de uma economia portuária

A região do litoral sul fluminense, ao longo do período imperial, compreendeu as municipalidades de Angra dos Reis, Parati, Itaguaí (criada em 1818 e instalada em 1820) e Mangaratiba (emancipada de Itaguaí em 1831). Todas estas localidades tiveram em comum a constituição de uma economia em boa parte vinculada às atividades portuárias. As variadas conjunturas, favoráveis ou não aos negócios estabelecidos em seus portos, determinaram períodos de acelerada expansão (inclusive no que se refere ao aspecto demográfico) e de lenta ou rápida decadência.
A relevância do comércio marítimo no litoral sul fluminense antecedeu a Independência do Brasil. Os quadros elaborados por John Luccock sobre as operações de cabotagem entre 1813 e 1817 demarcam o chamado distrito da Ilha Grande, cujos principais portos eram os de Ilha Grande e Parati, e os secundários Itaguaí, Mangaratiba, Guaratiba e Sepetiba (os dois últimos já localizados na área do futuro Município Neutro). As viagens em direção ao porto do Rio de Janeiro levavam de três a quatro dias, destacando-se a região observada pelo fornecimento de gêneros alimentícios como arroz, toucinho, açúcar, milho e café, além de materiais de construção (principalmente madeira), lenha, carvão, ferro e peles. Em contrapartida, da capital vinham o sal produzido nas áreas de Araruama e Cabo Frio, carne, trigo, farinha de trigo, vinho e numerosos outros artigos, além de escravos[1].
As mudanças econômicas verificadas na província do Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XIX, relacionadas à ampla difusão dos cafezais, afetaram profundamente seu litoral meridional. Como a lucratividade do café superou a das antigas lavouras comerciais fluminenses (cana, fumo e anil), novas plantações do primeiro cobriram as margens das estradas que conduziam a Resende, São João Marcos, Piraí e Barra Mansa, “antigos pousos de tropas de mulas”, no passado ligados às regiões mineradoras. Os novos centros cafeeiros, por sua vez, “demandavam os portos da Ilha Grande” para escoar sua produção[2].
Dentro deste processo, não pode ser subestimada a importância da vinda da Corte joanina para o Brasil em 1808. Transferida a sede do império para a América, crescia o valor estratégico dos portos, agora freqüentados por mais embarcações, que traziam um volume superior de mercadorias. Na Corte, por exemplo, foi preciso demarcar terrenos litorâneos para a construção de novos armazéns e trapiches[3].
Segundo Gorenstein, ao se transformar no principal entreposto comercial do mundo português, o Rio de Janeiro assumiu a função de “centro polarizador”, para onde convergiam mercadorias das áreas circunvizinhas e do Sul, do Prata, de Minas Gerais, Mato Grosso e São Paulo. A nova capital concentrava a importação de manufaturados europeus e o tráfico negreiro dirigido às demais províncias brasileiras. Este processo também favorecia a navegação de cabotagem, que além de não exigir “um grande empate de capital”, oferecia segurança e “giro rápido[4]”.
Muitos elementos indicam que este período se caracterizou, no litoral sul, por uma intensa prosperidade. Larissa Brown aponta que a população de Parati, calculada em 6.150 habitantes em 1789 (2.314 escravos), chegou a 8.566 em 1821 (3.534 escravos). Angra dos Reis, por seu turno, já contava com 16.682 moradores nesta última data, número bastante significativo para um Brasil essencialmente rural. A autora evidencia a projeção que os homens de negócios detinham na sociedade regional: de uma lista de oitenta indivíduos habilitados para serviços burocráticos em Parati, no ano de 1819, vinte e um foram qualificados como comerciantes, sendo mais um descrito como comerciante e dono de uma destilaria de aguardente. Os negociantes de Parati se tornavam influentes não apenas por efetuarem o abastecimento de escravos para seus vizinhos, como também pelo controle exercido sobre a execução de débitos[5].
Itaguaí, ex-aldeamento jesuítico que contava com apenas 25 casas em 1778, e 370 habitantes dez anos depois, experimentou um sensível crescimento com a instalação da lavoura canavieira, com capital estatal, nos anos 1790. Em 1821 já possuía 2.662 moradores, dos quais 1.505 eram escravos[6]. Beneficiado pela ampliação das atividades comerciais, o município atingiu a cifra de 17.339 habitantes (10.113 escravos) segundo o Censo provincial de 1840[7], quando já estava privado das áreas que formaram Mangaratiba. O relato do presidente Paulino José Soares de Sousa, em 1836, não deixa dúvidas a respeito do extraordinário incremento demográfico que aquela localidade experimentava. Discorrendo sobre a missão conferida ao capitão de Engenheiros Galdino Justiniano da Silva Pimentel, encarregado da logística das obras que mais tarde resultariam na construção do canal de Itaguaí, Soares de Sousa registrou que

Segundo as informações colhidas pelo mencionado engenheiro,
tinha essa vila apenas 36 casas no ano de 1830, 12 anos depois da sua
criação, e possui hoje 132;
reduzia-se então o número de embarcações que faziam o seu comércio a 3
sumacas e uma lancha, e conta hoje 27; então exportava anualmente 50.000
arrobas de café, hoje 400.000
[8]”.


Um texto redigido por João Manuel Pereira da Silva, poucos anos depois, revela que Itaguaí funcionava como entreposto para o café originário de São João do Príncipe, Piraí, Resende e “alguns pontos da província de São Paulo”, que ali chegava por intermédio de tropeiros. O volume de negócios proporcionado por esta conexão, segundo o articulista, permitia a existência na vila de “casas bastantemente [sic] grandes e ricas”. Entre os negociantes com firma estabelecida em Itaguaí, citados por Pereira da Silva, estava Felipe Néri de Carvalho, um dos principais líderes políticos deste segmento de classe na praça do Rio de Janeiro[9].
Um outro relatório presidencial, apresentado por Paulino José Soares de Sousa em março de 1840, expõe quantitativamente o destacado papel que as municipalidades litorâneas do sul fluminenses desempenhavam no transporte do café em direção ao Rio de Janeiro: na coletoria de Angra dos Reis, foram registradas 467.489 arrobas e 23 libras do produto ao longo do ano de 1839; em Itaguaí, 427.973 arrobas e 29 libras; em Mangaratiba, 370.052 arrobas e 12 libras; em Parati, 127.924 arrobas e 28 libras. Considerando-se que o total provincial foi de 1.606.070 arrobas e 12 libras[10], a região que analisamos realizou mais de 86% do montante destas movimentações. De posse de tais dados, o presidente definiu o café como “principal e mais avultado ramo de exportação” de vários portos da província, entre os quais mencionava nominalmente todos os do litoral sul. Soares de Sousa indicou ainda que a região conservava uma certa diversificação nas atividades econômicas, mas faltavam “dados completos e suficientes” sobre os outros gêneros exportados a partir daqueles ancoradouros[11].
É necessário ressaltar mais enfaticamente, sobretudo no que se refere às décadas de 1830 e 1840, que além do café e dos demais artigos agrícolas um outro fator garantia a riqueza dos portos que mencionamos: o tráfico atlântico, especialmente depois da lei de 1831, que inibiu o desembarque direto de africanos na região portuária da Corte. Como aponta Jaime Rodrigues, evitando os portos mais concorridos, como Rio de Janeiro e Santos, os traficantes passaram a buscar “pontos mais remotos”, geralmente servidos de “bocas de rios, enseadas e pequenas baías[12]”. Esta era, exatamente, a configuração geográfica do litoral sul fluminense, recortado nas baías de Sepetiba e da Ilha Grande, parcialmente encoberto pela restinga da Marambaia e por muitas ilhas que poderiam funcionar como esconderijos.
Sobre esta questão, outros indícios nos levam a crer que algumas das mais expressivas empresas traficantes da praça do Rio de Janeiro já estavam bem familiarizadas com o litoral sul fluminense desde o início do século XIX. Quando Elias Antônio Lopes doou ao príncipe regente a propriedade que hoje abriga o Museu Nacional, uma das benesses que recebeu em contrapartida foi a “propriedade do ofício de tabelião escrivão da Câmara e Almotaçaria da Vila de Parati”. Outro notório traficante, Antônio Gomes Barroso, se tornou alcaide-mor da Vila de Itaguaí, quando D. João VI promoveu a emancipação daquela municipalidade[13]. Barroso, em 1806, já havia adquirido o imenso Engenho de Itaguaí, uma das propriedades mais modernas deste gênero no Brasil. Ele se valeu [além, obviamente de suas vantajosas relações pessoais] da estratégia adotada pelo Estado português, naquele período, de vender total ou parcialmente as terras confiscadas da Ordem dos Jesuítas para reduzir a dívida pública. Este tipo de transação se concretizava “a troco das Letras que a Coroa era devedora a diferentes particulares[14]”.
Não é inoportuno relembrar o protesto de Teófilo Ottoni, perto da metade do século, contra os “oligarcas” que “não se descuidavam de aviventar a fé dos traficantes da costa d’África, que eram os seus mais prestimosos aliados”. Apesar das ressalvas que faz diante da postura ambígua dos liberais com relação ao tráfico, Mattos ratifica a percepção de Ottoni e outros a respeito do conluio entre “saquaremas” e negreiros, sendo estes, naquela altura, o “ramo mais significativo dos antigos colonizadores[15]”. Como a facção conservadora liderada por Paulino José Soares de Sousa, Joaquim José Rodrigues Torres e Eusébio de Queirós era especialmente influente na província do Rio de Janeiro, não surpreende que o litoral fluminense tenha abrigado alguns dos traficantes mais renitentes.
Mesmo com a introdução de medidas efetivas de repressão, na metade do século, navios negreiros insistiam em freqüentar aquelas praias, como o Trenton, também conhecido como Lembrança, incendiado em Cananéia, na província de São Paulo, no final de 1850, não sem antes desembarcar africanos na Ilha Grande e em Mangaratiba[16]. Nesta última, e também nas suas terras da Marambaia, Joaquim José de Sousa Breves continuava a promover o tráfico, em desafio às autoridades imperiais[17]. Não era diferente a situação em Itaguaí: no avançado ano de 1855, o juiz de Direito Luiz de Assis Mascarenhas precisava expedir informativos mensais dizendo ao presidente da província, José Ricardo de Sá Rego, que em sua jurisdição não se aparelhavam barcos com tal finalidade. Numa destas correspondências, o magistrado afirmou especificamente que o “célebre contrabandista Rivarosa” [em provável referência ao traficante Francisco Rivaroza y Urgeles] não estava escondido em Itaguaí[18].
Assinalemos que os negociantes que exportavam o café produzido no Vale do Paraíba (e em menor quantidade nos próprios municípios em que residiam), administravam o tráfico clandestino, o comércio interno “legal” de escravos e abasteciam a população em seus armazéns não tinham, necessariamente, os mesmos interesses econômicos dos plantadores escravistas, ainda que estes dois segmentos possam ser agrupados na categoria que a historiografia contemporânea, em grande parte, reconhece como a “classe senhorial”.
Podemos apresentar, como exemplo bastante agudo desta evidência, o caso do comendador Francisco José Cardoso, estabelecido em Itaguaí. Tendo construído o canal, hoje inteiramente assoreado, que ligava a vila-sede do município ao rio de mesmo nome, este negociante obteve das autoridades provinciais um duradouro monopólio sobre o embarque de café na região. Os contratos firmados permitiam que o próprio Cardoso estipulasse o valor do “pedágio” a ser pago pelos fazendeiros que necessitassem escoar sua produção através do complexo portuário de Itaguaí, podendo dispor da força policial caso encontrasse resistência[19].
Neste ponto, se torna útil a concepção de Théo Piñeiro, que a partir de parâmetros gramscianos vê o Estado imperial

“não apenas como o exercício de poder de uma determinada classe- o
que seria empobrecedor- mas como o “lugar” de confronto entre as classes
dominantes- e suas frações-, organizadas hierarquicamente, o que, apesar de se
apresentar como uma unidade, oculta a luta travada quotidianamente no interior
do próprio Estado[20]”.

Para o mesmo autor, a classe dominante imperial, composta por diferentes segmentos, os quais também se distinguiam por particularidades regionais, possuía um “caráter heterogêneo”. Como podemos, empregando um consenso historiográfico, constatar a hegemonia de uma das “frações de classe” consideradas, [no caso a dos plantadores escravistas] as demais [entre elas, sem dúvida, a dos negociantes] se convertiam em “frações dominadas da classe dominante[21]”.
Isto não implica automaticamente em admitir que as hierarquias existentes entre fazendeiros e negociantes se manifestaram de maneira uniforme ao longo de todo o período monárquico. Voltando nosso olhar para o sul da província do Rio de Janeiro, percebemos claramente certas nuances no tempo e no espaço.
Consultamos o Almanak Laemmert nos estratégicos anos compreendidos entre 1850 e 1859, que tiveram início com a extinção do tráfico atlântico e terminaram com a intensificação dos esforços para a ampliação da rede ferroviária da província do Rio de Janeiro. Pudemos notar, em todos os municípios do litoral sul fluminense, uma alternância no comando das câmaras municipais entre negociantes e fazendeiros. Em Parati, por exemplo, o presidente da Câmara entre 1850 e 1852 foi o cônego Joaquim Mariano do Amaral Campos, que possivelmente pertencia à família de Manoel Luiz Campos do Amaral (proprietário de “loja de drogas”) e do coronel José Luiz Campos do Amaral (dono de casa de consignação). O último, que também chefiou o Legislativo local, entre 1853 e 1856, neste ano se fez anunciar no Almanak como “negociante matriculado que recebe cafés e fumo a frete e a comissão”. Somente nas edições de 1858 e 1859 (em 1857 não constam os nomes dos vereadores) surge na presidência um provável representante dos proprietários de terras, Francisco Marques dos Santos, ao que parece parente do dono de engenho de aguardente Joaquim Marques dos Santos.
Na vizinha Angra dos Reis, disputaram o posto João Pedro de Almeida e Antônio Plácido Bittencourt. Almeida, presidente em 1850, 1851, 1852, 1858 e 1859 é citado várias vezes como fazendeiro, lavrador, fabricante de aguardente e “proprietário”. Bittencourt, titular de 1853 a 1856 (em 1857 imprimiu-se a mensagem “ainda não se fez a apuração”) e agente do correio no município, possuía também lojas de fazendas.
Mangaratiba iniciou a década sob a gestão do negociante Miguel Antônio da Silva. Em 1854, porém, assumia a presidência Luiz Antunes Gonzaga Suzano, agente do correio, mas provavelmente aparentado ao lavrador de café Manoel Antunes Suzano, da freguesia de Itacuruçá. Mais tarde, entre 1857 e 1859, vemos no comando da Casa o fazendeiro de café Virgolino da Costa Guimarães.
Finalmente, em Itaguaí ocorreu o processo inverso. O fazendeiro José Antônio Airosa, presidente da Câmara de acordo com as edições de 1850 a 1852, foi sucedido por Antônio Rodrigues de Azevedo, mais tarde barão de Ivaí, um homem que se dedicou a múltiplas atividades: mencionado como “negociante” pelo Almanak de 1849, gerenciou a Companhia de Ônibus Iguaçuana e chegou a ser superintendente da Imperial Companhia Seropédica Fluminense (empresa dedicada à pré-indústria da seda); em 1858, por fim, estava incorporado à lista dos fazendeiros de café. A partir de 1857, entretanto, a Câmara ficou em mãos de Manoel José Cardoso, sócio da firma de negociantes matriculados Francisco José Cardoso & Filho.
Já nos municípios sem saída para o mar, o quadro político, previsivelmente, foi muito diverso. Examinamos, a título de comparação, o que ocorria nas três municipalidades mais próximas das vilas litorâneas. A Câmara de Rio Claro, entre 1851 e 1857 (não há dados sobre 1850), esteve sob o comando do fazendeiro de café Nuno Eulálio dos Reis; nas edições de 1858 e 1859, vemos na mesma posição o também cafeicultor Firmiano José de Castro. Em São João do Príncipe, no período de 1850 a 1852, o presidente da Câmara era o coronel Ananias de Oliveira e Souza, fazendeiro da freguesia de São João Marcos. Entre os demais vereadores, figurava o já citado Joaquim José de Souza Breves, comendador da Ordem de Cristo e um dos maiores plantadores escravistas do Brasil. De 1853 a 1856, o cargo pertenceu a José Basílio Teixeira Pires, que não encontramos nas relações sobre os variados ramos da economia local, mas podemos associar pelo sobrenome tanto a Francisco Basílio Júnior, fazendeiro na freguesia de São José da Cacaria, quanto a João Basílio Teixeira Pires, importante cafeicultor do município vizinho de Itaguaí. Nas edições de 1858 e 1859 o próprio comendador Breves é citado como chefe do Legislativo local. Em Piraí, finalmente, um outro rodízio de cafeicultores no poder: sucederam-se na presidência José da Silva Penna (1850 a 1852), José Gomes de Souza Portugal (1853 a 1856) e Joaquim Manoel de Sá (1857 a 1859).
Mesmo com o fim do tráfico, antes protegido por muitas autoridades municipais e regionais, os portos do sul fluminense continuaram, por algum tempo, a merecer a atenção da presidência da província. O presidente João Pereira Darrigue Faro, em 1853, se dirigia ao coronel Conrado Jacob de Niemeyer transmitindo suas impressões sobre as obras autorizadas de “abertura e melhoramento” da barra do rio Itaguaí, o que permitiria a um comércio “quase estacionário por causa de melhores portos”, mas ainda assim responsável pela exportação de 500 mil arrobas de café, retomar seu crescimento[22]. Da mesma forma, em 1855, Luiz Antônio Barboza, chefe do Executivo provincial, informava que o porto de Mangaratiba, apesar de “mau” quanto às operações de embarque, era passível de melhora desde que se construísse uma ponte “que se prolongue pelo mar cerca de 60 braças” (132 metros). Quanto ao de Angra (“um dos melhores da província pelo seu seguro e vasto ancoradouro”), também exportava meio milhão de arrobas anuais de café, aparentemente sem contar com os portos próximos de Mambucaba e Jerumirim. Por Parati, teriam saído no ano de 1854 184.754 arrobas de café, 61.105 de fumo e 749 pipas de aguardente[23], o que também configurava uma tendência de crescimento em confronto com dados anteriormente examinados.
A julgar pelas informações fornecidas pelo vice-presidente Pereira da Silva, em 1857, as obras públicas de iniciativa de seus antecessores realmente devem ter beneficiado a região. Segundo ele, o “importantíssimo” porto de Mangaratiba agora exportava um milhão de arrobas de café, escoando a produção local e as dos municípios de São João Marcos, Rio Claro, Resende, Barra Mansa e Piraí (em parte), além de “alguns pontos da província de Minas Gerais”. Itaguaí (com 800.000 arrobas de café), Mambucaba, Parati (250 000 cada um) e Jerumirim (mais de 200.000) se seguiam em volume de exportações. Quanto ao porto de Angra dos Reis, apesar de muito decadente em conseqüência do crescimento de Jerumirim, ainda poderia se recuperar, caso fosse concluída a estrada de Japuíba[24].
Contudo, se os negócios portuários não iam mal, é importante assinalar que, verificando o conjunto das informações sobre sua economia, o litoral sul fluminense apresentava claros sinais de declínio por volta de 1850. João Fragoso percebeu, no reforço sofrido pela instituição da escravidão no Sudeste após o fim do tráfico atlântico, “em função da cafeicultura e de outras agriculturas mercantis”, a ação de “mecanismos de diferenciação econômica”. Assim, além de as regiões decadentes ou estagnadas perderem cativos para as mais dinâmicas, os senhores mais pobres acabavam por vender seus escravos aos mais ricos[25].
Fátima Gouvêa reforça esta tese, ao constatar que “os escravos foram redistribuídos no âmbito das próprias fazendas”, principalmente em favor dos maiores cafeicultores. Assim, no conjunto da província do Rio de Janeiro, municípios como Valença, Vassouras, Nova Friburgo, Cantagalo, Barra Mansa e Campos [grande produtor de açúcar] conseguiram reter sua população cativa, ao contrário de outros, entre os quais Angra dos Reis, Mangaratiba e Parati[26].
Ricardo Ruiz, que estudou mais detalhadamente Itaguaí e verificou seu crescimento demográfico negativo já na década de 1840, registrou, como fato comum a todos os municípios do litoral sul, no período compreendido entre o ano de 1850, marcado pela execução de um novo Censo provincial, e o de 1872, quando houve o primeiro Censo nacional, uma contínua queda da população. Enquanto o número de habitantes livres subia discretamente, o de escravos caía abruptamente. Desta maneira, os 16.003 habitantes de Itaguaí em 1850 (8.672 escravos) ficaram reduzidos a 13.875 em 1872 (4.803 escravos); em Mangaratiba a população total declinou de 9.372 pessoas na primeira data (4.630 escravos) para 7.468 na segunda (1.650 escravos); em Angra, os 25.216 habitantes de 1850 (10.480 escravos) caíram para um total de 21.833 em 1872 (4.544 escravos); finalmente, Parati, mesmo apresentando perdas gerais menores (de 13.146 para 12.194 habitantes), viu seu contingente cativo diminuir de 4.588 para 2.069 pessoas. Para o autor, “não há como não relacionar este definhamento ao crescimento do Vale do Paraíba, embora esta não tenha sido a única área [da província do Rio de Janeiro] a apresentar crescimento populacional[27]”.
Segundo Eulalia Lobo, tanto a cidade do Rio de Janeiro quanto a província de mesmo nome passaram, na década de 1850, por sérios problemas de disponibilidade de mão-de-obra, ocasionados pela absorção dos escravos pelas plantações de café. Outro fator que afetou negativamente a demografia da capital do Império e de outros lugares foram as severas epidemias de febre amarela e cólera, principalmente em 1855/56, que resultaram em “um declínio da população entre 1849 e 1856[28]”. O fenômeno agravou também a “baixa da produção de gêneros alimentícios”, o que deve ter atingido ainda mais o litoral sul, que além de não ser uma região privilegiada no que diz respeito ao desenvolvimento dos cafeeiros, mantinha outras culturas em seu sistema agrário.
Golpes mais contundentes para o comércio regional viriam nos anos 1860. Neste momento, o poderio dos cafeicultores fluminenses estava em um dos níveis mais elevados de sua trajetória. Como define Ricardo Salles, a cafeicultura, que por volta de 1830 “se tornou uma grande cultura na província fluminense, florescente e generalizada”, chegava em 1850 a seu apogeu. Neste ano, ela respondia por 79% da safra do país[29].
Paralelamente, o percentual da produção de café no Brasil em relação ao total mundial cresceu de 20%, aproximadamente, em 1826, para 53% em 1852-1853 e 60% em 1855. Esta conjuntura permitiu ao país, durante certo período, estabelecer um monopólio no mercado internacional, ditando preços, “ainda que na faixa de café de qualidade inferior”. Assim, como observou Ilmar de Mattos,

“(...) num intervalo de tempo relativamente longo, os
interesses ligados à expansão cafeeira pareciam ter restaurado em proveito
próprio o lado do pacto colonial que, nos tempos da Colônia, assegurava ao
colono o monopólio da produção na região colonial como decorrência da
monopolização do mercado consumidor pelo colonizador
[30]”.

Os cafeicultores fluminenses, portanto, estavam em posição de força para não somente dominar o Legislativo provincial, como também para apresentar seus interesses como prioridades perante o Estado imperial. Fátima Gouvêa, reconstituindo os embates ocorridos na Assembléia Provincial do Rio de Janeiro, aponta para um novo rumo nas discussões daquela Casa a partir da lei Eusébio de Queirós. Segundo a autora, o “conjunto mais amplo de fazendeiros fluminenses” passou a se interessar vivamente pelo desenvolvimento de um novo sistema de transportes. Tal projeto ganhou corpo como solução para seus problemas, em detrimento das “propostas de promoção da colonização européia[31]”.
Aferindo a vinculação geográfica dos deputados provinciais fluminenses durante as décadas de 1850 e 1860, Gouvêa notou que o Vale do Paraíba apresentava uma ligação muito forte com seus representantes, visto que mais de 30% dos parlamentares que puderam ser identificados com seus municípios de origem na investigação pertenciam àquela região. Os deputados do sudeste da província, cujas vilas e cidades continham as maiores plantações de café, trabalharam regularmente junto ao poder central para que este pressionasse a província no sentido de favorecer a construção da estrada de ferro D. Pedro II, destinada a ligar diretamente as áreas cafeeiras à Corte, nos mesmos moldes em que foi planejada no princípio dos anos 1850. Ainda que cada um deles desejasse, indubitavelmente, fazer com que a ferrovia passasse mais perto do centro de sua respectiva municipalidade[32], sua atuação foi decisiva para que o projeto avançasse.
Conforme a descrição de Ilmar Rohloff de Mattos, os trilhos atingiram primeiro a serra do Mar; em seguida, apesar dos obstáculos topográficos, a estrada de ferro D. Pedro II chegou a Barra do Piraí em 1864, Entre Rios em 1867 e Barra Mansa em 1871. O acesso mais rápido de sua produção à cidade do Rio de Janeiro favoreceu os municípios estritamente vinculados à cafeicultura e fez crescer ainda mais a importância da capital. Entretanto, como efeito colateral, determinou em caráter definitivo “o declínio dos pequenos portos do litoral[33]”.
A atitude agora desinteressada, por parte do governo provincial, em relação ao transporte marítimo efetuado a partir do litoral sul transparece no relatório de 1864, do presidente José Crispiano Soares. Diante da reclamação judicial da firma Viúva Figueira & C., que exigia pagamento pela desapropriação de uma “ponte de embarque e desembarque existente no porto de Mambucaba”, por determinação da presidência provincial em 2 de abril de 1862, Soares decidiu pura e simplesmente revogar esta última disposição. Segundo ele, os cofres públicos lucrariam com o abandono de “uma obra de bem pouca utilidade”, que ainda demandaria “consideráveis despesas com os reparos[34]”.
A drástica redução das transações portuárias foi duramente sentida pelos municípios do litoral sul fluminense. Uma obra cuja primeira edição foi produzida já no período republicano nos leva a crer em um quadro quase catastrófico:

“Até o ano de 1850 o município de Angra dos Reis pela sua
lavoura e comércio foi um dos mais importantes do Brasil. Seus famosos portos de
Jurumirim [sic], Ariró, Frade, Mambucaba, Abraão e Sítio Forte, eram verdadeiros
empórios comerciais. (...) Depois que a Estrada de Ferro Dom Pedro II atravessou
a Serra do Mar e ramificou-se para todos os lados, o município de Angra dos
Reis, como todos os do litoral desta Província, perdendo esses grandes elementos
que vinham do interior, foi, conforme já o dissemos, em proporção decrescente
até chegar ao estado de decadência em que se acha; e já estaria sem ação como
outros, se não tivesse elementos próprios”
[35]
.

O pior momento para a região parece ter sido a passagem de 1863, quando as obras da ferrovia ainda enfrentavam o obstáculo representado pelo “túnel grande do Rodeio”, para o ano seguinte, sobre o qual Taunay registrou com entusiasmo: “vencera-se a Serra![36]”. O Almanak Laemmert , nas edições de 1863 e 1864, trouxe as relações dos navios em operação no complexo portuário de Itaguaí, localizado praticamente numa linha reta entre a Baía de Sepetiba e Barra do Piraí. A primeira lista sugere um porto ainda bastante ativo, onde operavam regularmente três vapores: São Mateus (146 ton de carga), Pedro II (120 ton) e Cardoso (187 ton), além de embarcações menores como o patacho Pedro d’Alcântara, o paquete Nacional d’Itaguahy e diversos iates, que realizavam a navegação intermediária entre a vila, aonde não chegavam os barcos de maior calado, e o ancoradouro da ilha da Madeira, em que estes últimos esperavam atracados. No ano seguinte, o quadro é de aparente falência. Todos os vapores haviam “desaparecido”. Os navios com maior capacidade agora eram o iate Dois Amigos (47 ton) e a escuna Teresina (42 ton).
Embora sem fornecer números, Fátima Gouvêa informa que o porto de Mangaratiba também se viu em “uma dramática posição”. O projeto de construção de uma estrada que ligaria aquela municipalidade a Barra Mansa, já em andamento com trinta quilômetros prontos até São João do Príncipe, foi bruscamente abandonado com “a chegada da estrada de ferro D. Pedro II ao vale do rio Paraíba”. Isto arruinou o processo de recuperação econômica que se ensaiava em Mangaratiba[37].
As estatísticas que o presidente Josino do Nascimento Silva fez publicar em 1870, com base nos mapas remetidos pelas mesas de rendas, quantificam de maneira irrefutável o esvaziamento dos municípios litorâneos de sua antiga função de exportadores de café: pelo outrora pujante porto de Mangaratiba, no segundo semestre de 1869, passaram somente 99.200 arrobas do produto. A situação era pior em Parati, por cujos trapiches, durante o mesmo período, foram embarcados pouco mais de 140 000 kg, e Itaguaí, que ao longo de um ano (2º semestre de 1869 e 1º semestre de 1870) escoou menos de 500.000 kg, em brutal contraste com as cifras de 1857. Quanto a Angra dos Reis, Nascimento Silva nem menciona as partidas de café. O município é caracterizado, no relatório, como um pequeno exportador de aguardente, laranjinha, fumo e farinha[38].
A opção do Estado pelo transporte ferroviário provavelmente obedecia ainda a outras considerações, de caráter técnico: os portos brasileiros, que na verdade só se modernizariam de fato já na República, viviam “no limiar dos anos 1860” uma situação de estrangulamento, semelhante à que ocorrera no fim do período colonial. Isto prejudicava “o controle alfandegário das importações e exportações”, que estavam em contínuo crescimento, sendo fundamentais para “uma maior articulação da economia brasileira com as nações capitalistas[39]”.
___________________________________________________
[1] Ver Eulalia Maria Lahmeyer Lobo. História do Rio de Janeiro (do capital comercial ao capital industrial e financeiro). Rio de Janeiro: IBMEC, 1978, p. 84.
[2] Ver Denio Nogueira. Raízes de uma nação: um ensaio de história sócio-econômica comparada. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988, p. 295.
[3] Cf. Cezar T. Honorato. O Estado imperial e a modernização portuária. In: História Econômica da Independência e do Império/ Tamás Szmerecsányi e José Roberto do Amaral Lapa (organizadores). São Paulo: Hucitec/ ABPHE/ Edusp/Imprensa Oficial, 2002, p. 164.
[4] Ver Riva Gorenstein. Comércio e política: o enraizamento dos interesses mercantis portugueses no Rio de Janeiro (1808-1830). In: Negociantes e caixeiros na sociedade da Independência/ Lenira Menezes Martinho e Riva Gorenstein. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, 1993, p. 164.
[5] Cf. Larissa Virginia Brown. Internal commerce in a colonial economy: Rio de Janeiro and its hinterland, 1790-1822. Washington: University of Virginia, 1986, p. 341.
[6] Idem, pp. 171/172.
[7] Ver Ricardo Muniz de Ruiz. Sistema agrário, demografia da escravidão e família escrava em Itaguahy- séc. XIX (1820-1872. (Dissertação de Mestrado). Niterói: UFF, 1997, p. 47.
[8] Ver Paulino José Soares de Sousa. Relatório do presidente da província do Rio de Janeiro, 1836, pp. 38/39.
[9] Ver Jornal do Commercio de 19 de maio de 1839.
[10] Ver Paulino José Soares de Sousa. Relatório do presidente da província do Rio de Janeiro, 1840, p. 21.
[11] Idem, p. 22.
[12] Ver Jaime Rodrigues. O infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850). Campinas: Editora da Unicamp/ Cecult, 2000, p. 143.
[13] Ver Manolo Florentino. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro: séculos XVIII e XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, pp. 206/207. [14] Cf. Sônia Bayão Rodrigues Viana. A Fazenda de Santa Cruz e as transformações da política real e imperial em relação ao desenvolvimento brasileiro- 1790-1850 (Dissertação de Mestrado). Nierói: UFF, 1974, p. 32.
[15] Cf. Ilmar Rohloff de Mattos. O tempo Saquarema: a formação do Estado imperial. São Paulo: Hucitec, 1990, p. 163.
[16] Ver Jaime Rodrigues. O infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850). Op. cit., p. 153.
[17] Cf. Ilmar Rohloff de Mattos. O tempo Saquarema: a formação do Estado imperial. Op. cit., p. 163.
[18] Cf. Gustavo Alves Cardoso Moreira. Uma família no Império do Brasil: os Cardoso de Itaguaí (um estudo sobre economia e poder) (Dissertação de Mestrado). Niterói: UFF, 2005, p. 16.
[19] Idem, especialmente pp. 14/15.
[20] Ver Théo Lobarinhas Piñeiro. As classes sociais na construção do Império do Brasil. In: Estado e historiografia no Brasil/ org. Sonia Regina de Mendonça. Niterói: EdUFF, 2006, p. 84.
[21] Idem, pp. 82/83.
[22] Ver João Pereira Darrigue Faro. Relatório do presidente da província do Rio de Janeiro, 1853, p. 25.
[23] Cf. Luiz Antônio Barboza. Relatório do presidente da província do Rio de Janeiro, 1855, pp. 55-56.
[24] Cf. João Manoel Pereira da Silva. Relatório do vice-presidente da província do Rio de Janeiro, 1857, pp. 69 a 72.
[25] Ver João Luís Fragoso. O Império escravista e a República dos plantadores. In: História Geral do Brasil/ org. Maria Yedda Linhares. Rio de Janeiro: Campus, 1990, p. 147.
[26] Cf. Maria de Fátima Silva Gouvêa. O império das províncias: Rio de Janeiro, 1822-1889. Op. cit, p. 53.
[27] Cf. Ricardo Muniz de Ruiz. Sistema agrário, demografia da escravidão e família escrava em Itaguahy- séc. XIX (1820-1872. (Dissertação de Mestrado). Op. cit, pp. 47 a 49.
[28] Ver Eulalia Maria Lahmeyer Lobo. História do Rio de Janeiro (do capital comercial ao capital industrial e financeiro). Op. cit, p. 164.
[29] Ver Ricardo Salles. E o Vale era o escravo. Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 141.
[30] Ver Ilmar Rohloff de Mattos. O tempo Saquarema: a formação do Estado imperial. Op. cit, p. 63.
[31] Ver Maria de Fátima Silva Gouvêa. O império das províncias: Rio de Janeiro, 1822-1889. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 299.
[32] Idem, p. 302.
[33] Cf. Ilmar Rohloff de Mattos. O tempo Saquarema: a formação do Estado imperial. São Paulo: Hucitec, 1990, p. 60.
[34] Ver José Crispiano Soares. Relatório do presidente da província do Rio de Janeiro, 1864, p. 87.
[35] Ver Honório Lima. Notícia histórica e geográfica de Angra dos Reis. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1974, pp. 118-120.
[36] Ver Affonso de E. Taunay. Pequena história do café no Brasil. Rio de Janeiro: Departamento Nacional do Café, 1945, p. 102.
[37] Ver Maria de Fátima Silva Gouvêa. O império das províncias: Rio de Janeiro, 1822-1889. Op. cit, p. 52.
[38] Cf. Josino do Nascimento Silva. Relatório do presidente da província do Rio de Janeiro, 1870, pp. 57 a 59.
[39] Ver Cezar T. Honorato. O Estado imperial e a modernização portuária. Op. cit, p. 169.

Bibliografia:

Fontes primárias:
Almanak Laemmert, província, edições de 1849 a 1859, 1863 e 1864.
Jornal do Commercio, edição de 19 de maio de 1839.
Relatórios da província do Rio de Janeiro:
1836- Paulino José Soares de Sousa
1840- Paulino José Soares de Sousa
1853- João Pereira Darrigue Faro
1855- Luiz Antônio Barboza
1857- João Manoel Pereira da Silva
1864- José Crispiano Soares
1870- Josino do Nascimento Silva

Livros:
FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro: séculos XVIII e XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
GORENSTEIN, Riva & MARTINHO, Lenira Menezes. Negociantes e caixeiros na sociedade da Independência. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, 1993.
GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. O império das províncias: Rio de Janeiro, 1822-1889. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
LIMA, Honório. Notícia histórica e geográfica de Angra dos Reis. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1974.
LOBO, Eulalia Maria Lahmeyer. História do Rio de Janeiro (do capital comercial ao capital industrial e financeiro). Rio de Janeiro: IBMEC, 1978.
MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo Saquarema: a formação do Estado imperial. São Paulo: Hucitec, 1990.
NOGUEIRA, Denio. Raízes de uma nação: um ensaio de história sócio-econômica comparada. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988.
RODRIGUES, Jaime. O infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850). Campinas: Editora da Unicamp/ Cecult, 2000.
TAUNAY, Affonso de E. Pequena história do café no Brasil. Rio de Janeiro: Departamento Nacional do Café, 1945.

Artigos:
FRAGOSO, João Luís. O Império escravista e a República dos plantadores. In: História Geral do Brasil/ org. Maria Yedda Linhares. Rio de Janeiro: Campus, 1990.
HONORATO, Cezar T. O Estado imperial e a modernização portuária. In: História Econômica da Independência e do Império/ Tamás Szmerecsányi e José Roberto do Amaral Lapa (organizadores). São Paulo: Hucitec/ ABPHE/ Edusp/ Imprensa Oficial, 2002.
PIÑEIRO, Théo Lobarinhas. As classes sociais na construção do Império do Brasil. In: Estado e historiografia no Brasil/ org. Sonia Regina de Mendonça. Niterói: EdUFF, 2006.

Teses e dissertações:
BROWN, Larissa Virginia. Internal commerce in a colonial economy: Rio de Janeiro and its hinterland, 1790-1822 (Tese de Doutorado). Washington: University of Virginia, 1986.
MOREIRA, Gustavo Alves Cardoso. Uma família no Império do Brasil: os Cardoso de Itaguaí (um estudo sobre economia e poder) (Dissertação de Mestrado). Niterói: UFF, 2005.
RUIZ, Ricardo Muniz de. Sistema agrário, demografia da escravidão e família escrava em Itaguahy- séc. XIX (1820-1872). (Dissertação de Mestrado). Niterói: UFF, 1997.
VIANA, Sônia Bayão Rodrigues. A Fazenda de Santa Cruz e as transformações da política real e imperial em relação ao desenvolvimento brasileiro - 1790-1850 (Dissertação de Mestrado). Nierói: UFF, 1974.

Nos traços da modernidade: a representação da imigrante francesa na Revista Illustrada.

Giselle Pereira Nicolau

Bolsista CNPq/UERJ da pesquisa intitulada Francesas no Rio de Janeiro:
das decisões da partida às práticas e representações em terra estrangeira (1861-1914 ), orientada pela Profª. Lená Medeiros de Menezes.


Há tempos, a utilização de jornais e revistas como fonte histórica tornaram-se indispensáveis para o historiador preocupado com os processos sociais e culturais, pois oferecem dados que proporcionam uma reflexão sobre as demandas, gostos e mudanças que se operam no seio da sociedade. No projeto do qual participamos, a Revista Illustrada se constituiu em uma fonte indispensável para pesquisa. Considerada um “verdadeiro arquivo iconográfico, não somente de cantores, como também de artistas de espetáculo ligeiro”1, a revista nos possibilitou tomar contato com as novas relações sociais e práticas culturais que vinham se desenvolvendo na cidade.
No entanto, apesar da pouca tradição, os estudos sobre a imprensa ilustrada e o humorismo carioca e brasileiro, vêm conquistando, nos últimos anos a atenção de estudiosos interessados em analisar esse tipo de representação. Segundo Monica Velloso, historicamente, o humor tendeu a ser considerado como algo menor, indigno de uma reflexão sobre o social. Esse tipo de consideração acerca do humor é um traço contundente na tradição ocidental, onde o conceito de seriedade geralmente se confunde com rigidez e erudição.2
Por ser uma fonte riquíssima e sempre nova, foram analisados todos os exemplares disponíveis do ano da fundação da Revista Illustrada, privilegiando as caricaturas, charges, escritos satíricos e seções como, a “Resenha Teatral”, onde pudemos apreender em certa medida, as novas formas de expressão e comportamentos de uma nova época, e de como as mulheres francesas apareciam por meio destas.
A Revista Illustrada surgiu em 1º de janeiro de 1876 e deixou de existir em 1891. Foi fundada e editada pelo italiano Angelo Agostini, homem que revolucionou a ilustração impressa brasileira. Extraordinário caricaturista, este exímio jornalista assinalou, com a Revista, um dos grandes momentos da Imprensa brasileira. Homem de posições libertárias e anticlericais, Agostini, usou e abusou de sua irreverência em suas obras engrandecidas de um sentido político que, segundo Nelson Werneck:

Foi dos mais expressivos exemplos de como a militância política enriquece, amplia e multiplica o efeito das criações artísticas sendo, ainda, dos mais brasileiros dos artistas que nos conheceram e nos estimaram, porque sentiu compreendeu e expressou não apenas o que era característico entre nós, daí a sua autenticidade, mas aquilo que representa o conteúdo característico, isto é, o popular.3


Entretanto, o momento mais representativo da carreira de Angelo Agostini à frente da Revista Illustrada foi a defesa da campanha abolicionista, o que fez com que seu periódico ficasse conhecido como “a Bíblia da Abolição para os que não sabem ler”, devido as imagens que faziam crítica ao sistema escravista, sendo este entendido pelo autor, como o atraso do Brasil. Por conta de seu posicionamento frente a causa abolicionista, Agostini conquistou a amizade e respeito de muitos que assim como ele, lutavam pelo fim da escravidão. Tão notável fora a sua luta que, em 1888, foi homenageado pela Confederação abolicionista, que nas palavras de Joaquim Nabuco: “O seu título é a mais alta adoção que se possa imaginar: a de uma raça que adota os seus redentores, a de uma raça que perfilha um dos seus criadores.4
Buscando dialogar com as mudanças que se desenhavam na capital federal, possibilitadas pelos lucros do café, dentre elas, o gosto pela novidade e o surgimento da vida noturna no Rio de Janeiro, a Revista Illustrada, por falar a linguagem do novo, rapidamente caiu nas graças do público carioca. Publicada semanalmente, especificamente aos sábados, a revista era vendida a 500 réis o exemplar, com assinaturas anuais, semestrais e trimestrais, havendo variações entre os preços da corte e das províncias. As assinaturas podiam ser tomadas na Rua da Assembléia, 44, onde se encontrava a oficina litográfica à vapor da revista, como também, à Rua do Ouvidor, 65, na famosa Livraria Garnier.
Em sua estrutura, a Revista Illustrada, possui um formato mediano, composta de 4 a 8 páginas, de acordo com as novidades a serem veiculadas. À rigor, eram destinadas 4 páginas para as ilustrações e, mais 4 páginas destinadas as crônicas, ao humor, as seções teatrais, críticas e demais escritos que cumpriam a promessa que Agostini fizera aos seus leitores no 1º dia de existência da revista: “Falar a verdade, sempre a verdade ainda que isso lhe custasse um dente, pondo os pingos nos ii para ver se conseguia conseguir” 5 levar adiante o seu mais audacioso empreendimento.
Entendidas como um traço da modernidade, as caricaturas e charges publicadas pela Revista Illustrada, dotadas de um humor crítico, enfatizavam aspectos da vida cotidiana dos cariocas, questões morais e políticas, problemas sociais e até mesmo, epidêmicos, com destaque para a febre amarela, cujas imagens apareciam com freqüência no primeiro ano de existência da revista. Deste modo, foi possível perceber, por meio das charges, a presença de mulheres francesas sendo expressas em situações polêmicas como o envolvimento dessas mulheres em escândalos políticos, como no caso da circulação de notas em dinheiro falsas pela corte, como podemos ver neste diálogo datado do dia 29 de abril de 1876:

-Depois do descobrimento de notas falsas, os patrões examinam com todo o cuidado o estado da caixa. - As notas de 200$ são viradas e
reviradas.- E sujeitas a um exame minucioso. A gazeta declara que há uma pintasinha no nariz de S.M. Imperador... etc.etc. -Comment ! Vous croyes que j´ai des fausses notes moi? Eh bien Mr. Le Chef je vous invite a venir m´entendre chanter a l´Alcazar. (...)
6

Outra situação que envolvia a participação de francesas nas charges expressas por Agostini, foi uma homenagem à parteira Durocher, a francesa que ajudou a trazer ao mundo muitos cariocas que, devido ao seu profissionalismo, gozou de grande reputação na cidade, tornando-se comadre de muitas senhoras e madrinha de muitas crianças na corte. Neste caso, trata-se de um tipo específico de representação imagética, que segundo Carlos Moura, pode ser entendido como: “o retrato, feito a partir do modelo vivo, relativo a personalidades de destaque no mundo das artes ou da política”.7
Se por um lado foi possível constatar a presença de mulheres francesas por meio das charges impressas pela revista, por outro lado, foi possível encontrá-las em todos os exemplares do ano de 1876, em seções como a “Resenha Teatral” e “Bolhas”. Que, em última instância, refletem as novas idéias, gostos e demandas do público fluminense. Neste caso: o teatro e a fofoca.
A predileção do respeitável público pelo teatro se tornou uma das características mais marcantes da vida social da cidade durante todo o segundo reinado, como podemos compreender, nas palavras de Astrojildo Pereira:

Temos prova disso nas frequentes referencias ao teatro e a gente de
teatro-diz êle - desde os grandes nomes da ópera e do drama até às alegres francesas do Alcazar - que encontramos nas obras ficção dos melhores escritores dêsse período (...)
8

Segundo Hernan Lima, “não era de estranhar que os nossos caricaturistas, sempre à cata de aspectos marcantes da vida social contemporânea, mostrassem o mesmo intêresse pelas coisas dos palcos, ainda mais quando foi sempre tão freqüente entre êles uma predileção das mais vivas pelo gênero” 9. Neste caso, compreendemos todo o cuidado que fora conferido às seções da Revista Illustrada, destinada às discussões teatrais, sendo muitas destas prolongadas até os bastidores, revelando as querelas teatrais, tais como a luta pela preferência do público, bem como, os problemas pelos quais alguns artistas vinham passando neste momento, tal como a má remuneração.
Por meio da “Resenha Teatral” pudemos ficar informados do que se apresentavam nos palcos e qual era a preferência dos cariocas nesta época. Rigorosamente, havia espaço para as novidades de todas as casas de espetáculo da cidade, com destaque para a Phoenix, que trazia para o público, as paródias de operetas francesas, como a La Fille de Marie Angot, assinada por Artur Azevedo; e para o Alcazar Lyrique, casa de espetáculo da Rua da Vala, que sacudiu o Rio de Janeiro “como uma vara verde” 10. As operetas, a cançoneta maliciosa, os bailados e o cancã atraiam jovens noivos e esposos ao teatro, que segundo Elói Pontes, na sua biografia sobre Machado de Assis:

Houve pânico por tôda parte. As mães levaram as mãos à cabeça,
as noivas, esticando beicinhos, tremeram, as espôsas pediram socorros aos
santos de devoções. As francesas! A vida urbana já as conhecia da Rua do
Ouvidor, com suas modas, onde se encontravam as tentações de Paris.
11

Sobre o Alcazar, semanalmente, eram dedicadas linhas e mais linhas da seção teatral, com direito a elogios com relação aos espetáculos e ao desempenho das atrizes francesas, como este comentário do dia 26 de fevereiro de 1876:

Com um bonito poema e linda musica, e esta bem interpretada pela Sra. Rose Marie e pelo Sr. Deroches sem esquecer a Sra. Marie Denis, e estando bem vestida e enscenada a peça, a representação da nova opereta mostra que a empreza faz empenho em conservar seus creditos e os creditos de sua companhia.12

Mesmo quando o Alcazar “fazia fiasco em cena” 13, não faltavam elogios às atrizes que eletrizavam o estabelecimento francês, sendo entendidas muitas das vezes como um atrativo para casa de espetáculos, como podemos perceber no seguinte fragmento, extraído da Revista Illustrada:

...e os sorrisos de Mlle. Leonor Rivero, a mostrarem as trinta
e duas pérolas que lhe são os seus dentes, a elegancia extrema dos seus ricos
vestuarios a desenharem-lhe o esculptural contorno; a voz ampla e descommunal de
Mlle. Vanda; os olhinhos vivos e cubiçosos da Sra. Rita Peyrée; os quebros e
denguices de Sra.Rose Marie; as opulentas formas da Sra. Bellony; todos esses
atractivos continuam a puchar os espectadores para o Alcazar, desde os mais
tolerantes até os mais exigentes, sem exceptuar mesmo os severos folhetinistas.
Fallamos naquellas seducções, e não nos meritos artisticos de cada uma, pois de
certo os severos folhetinistas, não admitindo meritos em que canta a Mme. Angot
e representa o Nhô-Quim, não são lá levados por esses méritos, mas com certeza
por aquel´es.
14

Figuras da modernidade, as atrizes-cortesãs francesas não só deixaram marcas indeléveis na memória de todos aqueles que assistiam às suas apresentações ou acompanhavam sua circulação nas ruas, cafés, confeituras e restaurantes, mas também nas páginas da Revista Illustrada, que em seu primeiro ano de existência caricaturou, comentou e homenageou mulheres que espelharam as marcas de um novo tempo para a cidade, as Francesas no Rio de Janeiro.

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1 Hernan Lima. História da Caricatura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.p. 562.
2 Monica Pimenta Velloso. Modernismo no Rio de Janeiro, Modernismo no Rio de Janeiro: turunas e quixotes. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1996, pp.90/91.
3 Nelson Werneck Sodré, História da Imprensa no Brasil, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966. p. 226.
4 Nelson Werneck Sodré, História da Imprensa no Brasil, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966. p. 228
5 Revista Illustrada, 1° exemplar, dia: 1º de janeiro de 1876.
6 Revista Illustrada, exemplar do dia 29 de abril de 1876.
7 Carlos Moura. A Travessia da Calunga Grande - Três séculos de Imagens sobre o Negro no Brasil (1637-1899), São Paulo, Edusp, 2000, p. 29.
8 PEREIRA, Astrojildo. In: LIMA, Hernani. História da Caricatura no Brasil, p. 559.
9 LIMA, Hernan. História da Caricatura no Brasil, Rio de Janeiro, José Olympio,1963, p. 559.
10 PONTES, Elói. In: LIMA, Hernani. História da Caricatura no Brasil, Rio de Janeiro, José Olympio,1963. p. 557.
11 IDEM, p. 557.
12 Revista Illustrada, exemplar do dia 26 de fevereiro de 1876.
13 Trata-se de uma espécie de jargão utilizado pela Revista, sobretudo na coluna Resenha Teatral para comentar os fracassos encenados nos teatros cariocas.
14 Revista Illustrada, exemplar do dia 12 de fevereiro de 1876.


FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BAUDELAIRE, Charles. Sobre a Modernidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
LIMA, Hernan. História da Caricatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio,1963.
MOURA, Carlos. A Travessia da Calunga Grande - Três séculos de Imagens sobre o Negro no Brasil (1637-1899). São Paulo: Edusp, 2000.
REVISTA ILLUSTRADA, especialmente os números publicados em 1 de janeiro de 1876, 12 de fevereiro de 1876, 26 de fevereiro de 1876 e 29 de abril de 1876 .
SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966.
VELLOSO, Monica Pimenta. Modernismo no Rio de Janeiro: turunas e quixotes. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996.




A vila de Rio Grande e o seu porto: mercadorias, rotas e agentes mercantis (1803-1851)

SEMINÁRIO: PORTOS E CIDADES: Economia, Sociedade e as Articulações do Brasil com o Mundo Atlântico
A vila de Rio Grande e o seu porto: mercadorias, rotas e agentes mercantis (1803-1851)

Gabriel Santos Berute
Doutorando do PPG-História/UFRGS - Bolsista CAPES


Resumo: nesta comunicação investigo o comércio da província rio-grandense na primeira metade do século XIX através dos registros de entrada e saída de embarcações no porto de Rio Grande. Busca-se com isso observar possíveis modificações nas características desta atividade e nas suas vinculações com as demais praças mercantis em relação ao período colonial.
Desde o período colonial, a vila de Rio Grande constituía-se no único porto oceânico do Rio Grande de São Pedro do Sul, sendo passagem obrigatória das embarcações que entravam ou saíam carregadas de mercadorias. Ainda que Porto Alegre tenha concentrado parte dos mais importantes homens de negócio da capitania a partir de 1773, quando se tornou sede do governo e da Câmara[1], nas primeiras décadas do século XIX, Rio Grande ainda preponderava comercialmente sobre a capital[2].
Em diversas passagens do relato de Saint-Hilaire acerca de sua passagem pelo Rio Grande de São Pedro, entre 1820 e 1821, é reafirmada a posição da vila como centro comercial da capitania e é sublinhada a presença da Alfândega que transformava Rio Grande na sede da administração da capitania e a sua importância como principal centro de comércio de couros e charque[3]. Em 1809, o comerciante inglês John Luccock, em visita de negócios, já afirmava que a vila poderia ser considerada como o maior mercado do Brasil Meridional e era residência dos principais negociantes da capitania ou de seus representantes[4]. O francês Arsène Isabelle, por sua vez, na ocasião de sua visita (1835) considerava que a prosperidade deveria ser atribuída ao “espírito de associação de seus negociantes”, que financiavam a realização de obras de interesse público que visavam atrair o comércio estrangeiro e melhorar infra-instrutora da cidade[5].
Como resume Maria Bertulini Queiroz, apesar das condições naturais adversas, nas primeiras décadas do século XIX, Rio Grande consolidava sua função comercial e sua importância para a economia rio-grandense. Assim, a antiga função militar da vila sedia espaço para as atividades mercantis[6]. De tal modo, tendo em vista a sua importância, nesta comunicação apresento a análise do comércio de marítimo e de cabotagem através do porto da Vila do Rio Grande durante a primeira metade do século XIX.
Os dados aqui utilizados foram localizados nos fundos documentais Marinha e Autoridades Militares do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul[7]. Através dos dados coligidos na documentação consultada procuro identificar quais eram os seus parceiros mercantis, os principais produtos comercializados e a concentração das transações realizadas através do referido porto. Desse modo, busca-se observar se ocorreram modificações significativas nas características da atividade mercantil e nas vinculações comerciais com as demais praças mercantis em relação ao período colonial.
Nestes fundos são encontrados ofícios nos quais constam as seguintes informações: data do embarque ou desembarque; tipo e “bandeira” da embarcação; nomes da embarcação, do mestre e do dono da mesma; as entradas apresentam o tempo de duração da viagem (dias de viagem); portos de destino e origem e a carga[8]. Em parte dos registros não se informa o dono da embarcação, mas o consignatário da carga. Em parte deles não fica muito clara se o agente é o proprietário da embarcação ou é apenas o consignatário da carga transportada.
Os registros referem-se ao período entre 1803 e 1851, embora nem todos os anos do intervalo estejam contemplados e a distribuição dos mesmos ao longo do ano não seja uniforme. Os dados que informam sobre a entrada de embarcações no porto referem-se aos anos de 1803 até 1851, enquanto as saídas restringem-se ao ano de 1809 e aos anos a partir de 1831. Assim, as conclusões apresentadas aqui devem ser tomadas como tendências até que a possível incorporação de novas fontes possibilite considerações mais definitivas.
Na Tabela 1 apresento os dados referentes à origem e ao destino das embarcações. São no mínimo 58 localidades, já que em uma pequena parte dos registros não há informação a cerca do destino ou da origem da embarcação. Percebe-se que a maior parte da movimentação diz respeito ao comércio de cabotagem (Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco e Santa Catarina). Juntas as quatro praças representam cerca de três quartos das entradas e saídas de embarcações computadas. O Rio de Janeiro era o principal parceiro comercial. A Bahia era a segunda origem mais freqüente das embarcações enquanto Pernambuco se destacava como o segundo destino. Santa Catarina, por sua vez, aparece como a terceira região de origem.
Conforme Helen Osório, durante o período colonial estas capitanias eram as principais parceiras comerciais do Rio Grande de São Pedro. A principal delas, o Rio de Janeiro, era a origem de 67 a 76% do total as importações sul-rio-grandenses[9]. Observa-se nos dados reunidos abaixo, que assim como no período colonial, o Rio de Janeiro mantinha a sua posição de destaque.

Apesar do predomínio do comércio com os demais portos do Brasil, também é possível observar a ocorrência de transações diretas com importantes portos nos Estados Unidos (Nova York, Baltimore e Boston) e na Europa (Hamburgo, Marselha, Amsterdã e Liverpool), além dos negócios realizados com Portugal (Lisboa e Porto)[10]. Destaca-se ainda a atividade mercantil com a região do Rio da Prata. Maria Bertulini Queiroz lembra que parte importante das transações comerciais da capitania voltava-se mais diretamente aos seus vizinhos platinos. A partir da década de 1790, o Rio Grande assumiu a função de ligar o Rio de Janeiro e o Rio de Prata, através do contrabando, o que resultava bastante rendosa para todos os envolvidos[11].
A pauta das mercadorias transacionadas é composta por aproximadamente cem produtos. Na Tabela 2, constam os produtos com mais de cinco carregamentos registrados. Os produtos apresentados nela reúnem 91% dos carregamentos importados e 87% dos exportados. As importações apresentavam-se relativamente mais variada em relação aos produtos exportados. Até o momento, não se verificou mudanças significativas entre os itens negociados na primeira metade do século XIX e os que eram transacionados no período colonial. Infelizmente, apenas uma parte das embarcações possuía cargas especificadas. Os principais itens importados eram os escravos e o sal, mas também eram importantes produtos como açúcar, fumo, farinha, fazendas, vinho, açúcar e gêneros diversos.

Como se pode observar, o sal consta como o principal produto importado e representava 18,5% das transações com cargas informadas. Nos registros que apresentavam o volume das cargas de sal, pode-se constatar que no mínimo 59.368 alqueires de sal foram desembarcados no porto de Rio Grande através destas transações. Como se sabe, o sal era fundamental para o preparo do charque, um dos mais importantes produtos exportados pelo Rio Grande de São Pedro. Muito provavelmente, o volume carregamentos de sal desembarcados era superior ao que pode ser verificado através desta documentação. Ao analisar a importação do insumo nos primeiros anos da segunda metade do século XIX, Josiane da Silveira contabilizou a entrada de 154 carregamentos em 1850 e de 205, em 1854. A autora constatou através da confrontação com os registros de importação de outros produtos (principalmente, farinha, cal, fazendas e açúcar) que o sal apresentava o maior número de carregamentos nos dois anos por ela considerados[12].
No que se refere às origens das cargas (Tabela 3), entre as 232 transações do insumo, destacam-se: Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco que constavam como origem de 85% das cargas contabilizadas; entre os portos estrangeiros, os principais eram Montevidéu, Lisboa, Porto e Cádiz com 10% do total. Destaca-se ainda as três cargas vindas da Ilha do Sal, na costa ocidental do continente africano. É possível que a participação dos portos estrangeiros fosse maior, já que o Rio de Janeiro a partir da primeira metade do século XVIII havia se transformado em ponto de encontro de uma intricada série de circuitos mercantis e também um porto de redistribuição de mercadorias importadas[13].

Confrontando com os resultados apresentados por Josiane da Silveira referentes aos anos de 1850 e 1854, chama a atenção a maior participação dos portos estrangeiros, especialmente, Lisboa e Cádiz. Juntas, as duas localidades constavam como origem de 25 e 32% das cargas de sal nos dois anos por ela contabilizados[14].

Quanto ao tráfico negreiro, foram contabilizadas 203 transações. Estas representavam cerca de 16% da cargas especificadas nas embarcações que aportaram em Rio Grande no período considerado. Todos os desembarques com cativos tinham como origem portos do Brasil. O Rio de Janeiro, seguido da Bahia e Pernambuco representavam 90% das origens informadas (Tabela 3). Não é possível afirmar exatamente quantos cativos foram importados, uma vez que em alguns registros a indicação da quantidade exata de escravos transportada não era apresentada e o registro apresentava expressões genéricas como “escravos” e “vários escravos”. De acordo com os registros com volume especificado, sabe-se que entraram no mínimo 2.549 escravos distribuídos nas 203 transações identificadas. Em 12 registros de desembarque dos anos de 1841 e 1842, quase todos vindos do Rio de Janeiro, não havia especificação do volume.
Segundo Helen Osório, no período entre 1803 e 1822, foram desembarcados no mínimo 18.208 escravos na então capitania[15]. Ao analisar dados referentes ao tráfico de escravos do Rio Grande de São Pedro, estimei que entre 1788 e 1831 foram importados 15.374 escravos[16]. Percebe-se, portanto, que a falta de dados mais precisos dificulta uma análise mais apurada a este respeito a partir da fonte aqui considerada.
Quanto às exportações rio-grandenses, na mesma Tabela 2 verifica-se que o gado e seus derivados permaneceram como os principais produtos negociados. Gado, charque, carnes, couros, sebo, chifres, cabelos e canelas de bois, compunham 84% do total das cargas indicadas. Somente as carnes, o charque e os couros somavam aproximadamente 66% dos registros de exportação do porto de Rio Grande.


A Tabela 4 foi organizada a fim de observar a variação dos destinos de acordo com os produtos exportados. Nela é possível perceber que as cargas de carnes e de charque tinham como destino o mercado interno. O principal destino das carnes era o Rio de Janeiro, Pernambuco e Bahia. Os dois únicos portos estrangeiros identificados foram Liverpool e Nova York. Quanto ao charque, há uma inversão das duas primeiras posições e a praça mercantil de Pernambuco consta como destino de mais da metade das cargas despachadas de Rio Grande. Nos primeiros da década de 1850, o quadro permanecia o mesmo: Pernambuco era o maior importador do charque rio-grandense seguido pelo Rio de Janeiro[17].
Helen Osório demonstrou que no período colonial a Bahia era o principal destino do charque exportado pela capitania rio-grandense, seguido do Rio de Janeiro e de Pernambuco. “As vendas para esses três portos representava, no mínimo, 82% (em 1817) e, no máximo, 99,4% (em 1802) das exportações totais de charque”. Parte do charque enviado para o Rio de Janeiro era reexportada, inclusive para Bahia e Pernambuco, além de Angola e Benguela. Quanto aos destinos fora do Rio Grande, autora afirma que Havana era destino de uma pequena porção do produto (cerca de 2%, entre 1802-21), exceto nos anos de 1814, 1816 e 1818, quando ficou com parcelas que variaram entre 9 e 13%[18].
Quanto aos couros, o destaque fica para a maior presença de portos estrangeiros. Ainda que o Rio de Janeiro apareça como principal destino, os 24 destinos estrangeiros somam 48% das consignações de couros contabilizadas. Os principais destinos fora do Brasil eram Nova York, Marselha, Liverpool, Porto/Portugal, Cork, Boston, Baltimore e Hamburgo que somavam 34% das exportações do produto; destacam-se ainda Filadélfia, Cádiz e Amsterdã.
Helen Osório constatou que entre 1790 e 1821 que o Rio de Janeiro “recebeu nos (...) anos de 1803, 1808 e 1815, 85%, 78,6% e 76,2% dos couros. Entre 1818 e 1821, sua participação oscilou entre 83,5 e 79,6%. Pernambuco era o terceiro porto importador de couros, mas em proporções muito inferiores às da Bahia”. A autora acrescenta que este era o segundo produto mais reexportado pelo Rio de Janeiro, perdendo apenas para o açúcar, que tinha os valores bastante superiores[19].
Lembrando que os registros de saída aqui analisados dizem respeito aos anos a partir de 1831, em comparação com os dados de Helen Osório, fica sugerido que a função de reexportador dos couros rio-grandenses que o porto do Rio de Janeiro desempenhava foi reduzida a partir do primeiro reinado, embora se mantivesse em patamares importantes.



Quando se analisa os mesmos dados organizados de acordo com a “bandeira” da embarcação na qual foi feita a exportação dos referidos produtos (Tabela 5), percebe-se que os “nacionais” são quase maioria no transporte de carne e do charque, além de terem participação importante nos couros. As bandeiras estrangeiras, por sua vez, correspondem à parcela de 44% das embarcações carregadas com couros que saíram do porto de Rio Grande. As “americanas”, as “inglesas” e as “francesas” foram as que apresentaram os percentuais mais elevados.
De acordo com o negociante inglês, John Luccock, na época de sua passagem pela capitania rio-grandense (1809), o comércio passava por uma transformação. Muitos dos produtos anteriormente importados através de Portugal estavam perdendo espaço para os produtos ingleses devido aos seus preços mais atrativos e por serem “melhor adaptados ao crescente gosto pela exibição, pois que as possibilidades que a riqueza concedia se escoavam por vários canais”[20]. Sobre o comércio francês, Arsène Isabelle chama a atenção para a reduzida presença francesa no comércio nas localidades que visitou, assim como “em todos os pontos do continente americano”[21].
Quanto aos Estados Unidos, a consulta à documentação emitida a partir do consulado no Rio Grande do Sul informa que apesar dos problemas enfrentados durante a Guerra dos Farrapos, diversas embarcações estadunidenses entraram no porto de Rio Grande, entre 1831 e 1841, carregadas de farinha, sal, especiarias e artigos domésticos, entre outros produtos. Do mesmo porto saíam levando couros, cabelos, chifres, sebo e erva-mate[22].
Quanto aos agentes envolvidos nas transações realizadas através do porto de Rio Grande, é importante conhecer de que forma estas estavam distribuídas entre os agentes mercantis identificados. Reuni na Tabela 6, sob a designação agente, os consignatários de cargas e os donos de embarcações. Alguns deles apareceram tanto como consignatários quanto como proprietário das embarcações, no entanto, em apenas um caso foi informado os nomes de ambos os agentes no mesmo registro. Nos demais foi indicado apenas o nome de um deles.

Constatou-se que tanto nas entradas quanto nas saídas, o percentual dos registros nos quais não constam os nomes dos consignatários e/ou dos proprietários das embarcações é considerável: entre 33 e 26%, respectivamente. Assim, não as considerei na avaliação apresentada a partir dos dados presentes na Tabela 4.
Observando o conjunto da movimentação portuária, percebe-se que a maioria dos agentes fez uma única transação[23]. Nas entradas (importação), 289 agentes mercantis estiveram presentes no comércio do Rio Grande de São Pedro no período considerado. Aqueles que foram responsáveis por até duas transações representavam 87% do total de agentes e reuniam 61% dos 478 registros que tiveram os agentes informados. Entre eles, os que aparecem em um único registro representavam 73% dos agentes e foram responsáveis por aproximadamente 44% das transações. Os quinze agentes (5%) que realizaram cinco ou mais transações, por sua vez, foram responsáveis por 24% das entradas. Percebe-se, que embora a maioria das transações tenha sido realizada por aqueles que fizeram poucas transações, um pequeno grupo de agentes mercantis concentrava uma parte importante dos negócios realizados. O grupo com até duas transações fez, em média, 1,2 transações, enquanto aqueles que fizeram 5 ou mais transações fez 7,5 transações cada.
Quanto ao movimento de saída de embarcações (exportação), observa-se um grupo menor de agentes: 238. Aqueles que fizeram uma ou duas transações reuniram 86% dos consignatários e proprietários e 62% dos negócios realizados no período considerado. Ou seja, a mesma média observada nos registros de entrada para o mesmo grupo: 1,2 consignações. Em comparação com o movimento de importação de mercadorias, os agentes que fizeram apenas uma transação eram um pouco menos representativos (65,5%), e foram responsáveis por um percentual um pouco menor das transações (38,5%). No outro extremo, os nove agentes que fizeram mais de cinco transações (4%) foram responsáveis por 16% das transações: 7,2 consignações, em média. Portanto, apresenta a mesma tendência observada nos registros de entrada de embarcações.
Na Tabela 7 reúne os 45 agentes com mais de duas consignações de exportação de carne (39%), ou seja, a maior parte deles foi responsável por apenas uma remessa. Os presentes na tabela abaixo foram responsáveis por aproximadamente 62% das 189 consignações de carnes que constam nos registros consultados.

Destaca-se a presença de Antonio José Afonso Guimarães, Antonio Raimundo da Paz, Antonio José de Oliveira Castro e Militão Máximo de Souza, o único com cinco consignações, cerca de 3% das transações. Márcia Kuniochi constatou a presença deste último agente (natural do Rio Grande do Sul) em diversos carregamentos de gado e seus derivados remetidos de Porto Alegre e Rio Grande para o porto do Rio de Janeiro, entre 1842 e 1854[24]. De acordo com Carlos Gabriel Guimarães, Militão Máximo de Souza (Visconde de Andaraí) estava envolvido com o comércio de abastecimento da região Sul do Brasil e atuava no comércio de grosso trato de navios e comissões. Foi membro da diretoria do Banco do Brasil de Irineu Evangelista de Souza, o Barão/Visconde de Mauá, entre 1851 e 1853. Deputado do Tribunal do Comércio da Corte (1853), era sócio comanditário da Sociedade Bancária Mauá McGregor e Cia. (fundada em 1854). Militão Máximo de Souza também consta entre os sócios da Companhia de Navegação a Vapor e Estrada de Ferro Petrópolis, constituída por Mauá e seus sócios, em 1852, assim como da Cia. Anônima Luz Steárica de Produtos Químicos, fundada na mesma época[25].
Os exportadores de charque com duas ou mais consignações (Tabela 8), por sua vez, foram apenas sete (16%), mas concentraram praticamente 36% das consignações de exportação de charque. O principal deles foi a firma comercial, Paiva & Vianna, com 11% das consignações. Já Eufrásio Lopes de Araújo e Francisco Manuel Barbosa que também aparecem com destaque concentram aproximadamente 13% das mesmas. Segundo as informações reunidas por Josiane da Silveira, Eufrásio Lopes de Araújo teria nascido em Rio Grande, em 1814; foi um dos sócios da Praça do Comércio da mesma cidade e teve atuação política de destaque, tendo recebido diferentes títulos honoríficos, inclusive o de Visconde de São José do Norte[26].
Chamo a atenção para a presença maciça de luso-brasileiro e, conseqüentemente, a total ausência de agentes com nomes estrangeiros (anglo-saxões, europeus provenientes de outras localidades – além de Portugal –, assim como espanhóis e vizinhos da região platina), entre os consignatários de carne e charque. De outro modo, estes estão presentes com certo destaque entre os principais exportadores de couros. A Tabela 9 concentra 13% dos agentes que exportaram couros e a participação destes era equivalente a parcela de 29% das consignações do produto. Seguindo o que havia percebido acima, quando apresentei os destinos e as “bandeiras” das embarcações que transportaram couros, os agentes estrangeiros e suas firmas foram responsáveis por parte significativa das transações. Mesmo que os luso-brasileiros sejam predominantes numericamente, os cinco estrangeiros identificados acumulam 9% das consignações de couros.


Ainda que os dois principais exportadores sejam a firma de um luso-brasileiro, Manuel Ferreira Porto & Companhia e o já mencionado Antonio José de Oliveira Castro, destaca-se a participação da firma Holland Deveis & Companhia e do negociante Adolfo Hugentobler e da firma da era sócio, Hugentobler & Douley. Os estrangeiros, anglo-saxões (talvez ingleses), concentram 6% das consignações registradas, praticamente a mesma parcela acumulada pela firma de Manuel Ferreira Porto. Luccock afirma que havia apenas uma casa comercial britânica em 1809, na ocasião de sua visita em Rio Grande. Ou seja, a presença inglesa parece ter sido ampliada nos anos posteriores a passagem do negociante pela região[27]. Ao analisar as redes mercantis nas quais o porto de Rio Grande estava envolvido em meados do século XIX, Daniel Torres afirma que a firma Hugentobler & Douley destacava-se na rede mercantil estabelecida entre Rio Grande e diversos portos nos Estados Unidos (Salem, Nova York, Boston, Baltimore, Nova Orleans e Richmond). Para estes enviava navios carregados de couros salgados e chifres que no retorno traziam mercadorias como cadeiras e outros utensílios, além de chá, e farinha de trigo[28]. De acordo com os registros portuários por mim analisados, além dos portos norte-americanos, Hugentobler e sua firma Hugentobler & Douley também enviou couros para Cádiz e Marselha. Para Cádiz, enviou cabelos e couros no Brique denominado “Alfred”, de bandeira francesa, que partiu em 8 de março de 1848. Em 27 de fevereiro de 1851, a companhia Hugentobler & Douley despachou duas embarcações de bandeira francesa – os brique Temístocles e Alfonse –, carregados de couro para Cádiz e Marselha (com escala em Cádiz), respectivamente[29].
Na Tabela 10, onde constam os importadores de sal que fizeram mais de uma remessa (26% deles e 37% das exportações), constata-se que a firma de Holland Deveis & Companhia (também presente entre os exportadores de couros) é o agente que mais vezes aparece nos registros de desembarque do insumo, juntamente com Antonio José de Oliveira Castros, que também se destacava entre os exportadores de carne e couros. As sociedades mercantis de Holland Deveis & Companhia e de Forbes & Companhia são os únicos estrangeiros que identifiquei entre os principais importadores de sal. Paiva & Vianna, o principal exportador de charque, por sua vez, também estava envolvido na importação de sal, embora com um número menor de carregamentos.
Antonio de Siqueira, Paiva & Vianna e Lobo & Barbosa constam entre os maiores importadores do insumo nos registros computados por Josiane da Silveira referentes aos anos de 1850 e 1854. O primeiro aparece com 2 consignações (1850), o segundo com 11 em 1850 e mais três em 1854. Já Lobo & Barbosa consta com 4 e 7 consignações, nos respectivos anos. A autora também identifica a presença da firma Hugentobler & Companhia como responsável por 6 consignações no ano de 1850 e de 22, em 1854[30].

Outros importadores de sal que merecem destaque, além da sociedade comercial de Deveis e Antonio José de Oliveira Castro, são Antonio de Siqueira, Antonio Raimundo da Paz e Militão Máximo de Souza por também constarem entre os exportavam couros, e também de carne, no caso deste último. Juntos, os agentes que constam nestas transações respondem por parcelas de 10% e 9% das consignações de couros e sal, respectivamente.
Considerando em conjunto as quatro últimas tabelas, percebe-se que os luso-brasileiros dominavam os negócios de exportação de carne e charque, além de serem predominantes na importação de sal e na exportação de couros. Neste último, os estrangeiros apareciam de forma mais consistente[31].
Além disso, é importante sublinhar a participação de alguns dos importadores de sal na exportação de um ou mais dos três produtos destacados nas tabelas acima. Apenas Antonio José de Oliveira Castro estava envolvido nas transações dos quatro produtos considerados. Outros como Holland Deveis & Companhia e Manuel Ferreira Porto & Companhia importavam sal e também exportavam couros. Já as sociedades mercantis de Lobo & Barbosa e Paiva & Viana estavam envolvidas concomitantemente com a importação de sal e a exportação de charque.
Os negócios destes agentes não se limitavam aos produtos apresentados acima. A firma de Deveis, por exemplo, consta igualmente como importador de produtos como farinha de trigo, carvão e gêneros diversos, vindos de Liverpool, para onde enviava cabelo e chifres, além dos couros; de Lisboa trazia sal, azeite e vinho [32]. Já a firma Paiva & Viana, além dos couros que remetia para a cidade do Porto, enviava charque para a Bahia de onde importava aguardente, escravos e o sal[33]. Manuel Ferreira Porto & Companhia, por sua vez, importava escravos, gêneros diversos e sal do Rio de Janeiro, que era destino de couros enviados através de sua firma[34].
Enfim, o que se pretende sugerir com estes exemplos e com a análise das tabelas acima é que estas transações faziam partes de redes mercantis complementares, nas quais os mesmos agentes importavam e exportavam mercadorias entre as mesmas praças, de acordo com as necessidades e conveniências. Conforme Fernand Braudel definiu, “Os circuitos mercantis são iguais aos circuitos elétricos: só funcionam fechados”, uma vez que cada trajeto de ida corresponde a um trajeto de volta. O autor acrescenta que este processo mercantil não funcionava apenas nas ramificações de ida e volta, uma vez que o chamado comércio triangular em diferentes circuitos mercantis do Atlântico funcionava na forma de circuitos fechados nos séculos XVII e XVIII. Para Braudel, o “comércio de entreposto” utilizado pelos holandeses no comércio interno na Índia (século XVII) também pode ser classificado desta forma[35].
Além deste aspecto, cabe destacar a lucratividade obtida com o comércio de longo curso. As transações aqui analisadas ligavam Rio Grande a praças mercantis distantes como Liverpool, Marselha, Porto/Lisboa, Cádiz e Nova York. Assim seria esperado que os mesmos agentes que exportavam para estas regiões também importassem mercadorias para serem comercializadas no seu retorno ao porto de origem. Mesmo no comércio de cabotagem esta prática seria comum. Pois, conforme Fernand Braudel, era justamente na intermediação na comercialização de mercadorias produzidas em localidades distintas que os agentes mercantis auferiam seus lucros através das diferenças de preços das mercadorias comercializadas[36].
Procurei ao longo desta comunicação apresentar as características básicas das transações mercantis realizadas através do porto da Vila de Rio Grande, único porto marítimo da capitania/província. Destaquei que embora os produtos importados e exportados não tem apresentado alterações significativas, percebeu-se que a variedade dos parceiros comerciais ampliou-se consideravelmente. Todavia, o Rio de Janeiro ainda era a principal praça mercantil com a qual o Rio Grande do Sul realizava os seus negócios.
Quanto aos agentes mercantis, observei que a maior parte deles transacionou mercadorias em no máximo duas ocasiões, mas concentravam parcela significativa das importações e exportações. Por outro lado, um pequeno grupo deles realizou, em média, um número mais elevado de transações. Por fim, observei a presença de importantes agentes mercantis que se destacavam por atuar concomitantemente na importação e na exportação dos principais produtos negociados através do porto de Rio Grande.
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[1] CESAR, Guilhermino. História do Rio Grande do Sul. Período Colonial. Porto Alegre: Editora Globo, 1970, p. 168-185; QUEIROZ, Maria Luiza Bertulini. A Vila do Rio Grande de São Pedro, 1737-1822. Rio Grande: FURG, 1987, p. 107-45.
[2] FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre e seu comércio. Porto Alegre: Associação Comercial de Porto Alegre, 1983, p. 9-37.
[3] SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal/Conselho Editorial, 2002, p. 67-73; 87-9; 94-101; 106-8.
[4] LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. São Paulo: Livraria Martins, 1942, p. 116-17; 122.
[5] ISABELLE, Arsène. Viagem ao Rio da Prata e ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal/Conselho Editorial, 2006, p. 257 [grifo do autor].
[6] QUEIROZ (1987), op. cit., p. 156-61.
[7] ARQUIVO HISTÓRICO DO RIO GRANDE DO SUL (AHRS). “Autoridades Militares”, maços 14, 16, 18, 22, 27, 46, 51. “Marinha” – Praticagem da Barra, maços 22, 23, 24; 27 e 28; Diversos, maço 72.
[8] Apenas uma parte dos registros de cargas está acompanhada dos volumes das mercadorias transportadas. Além disso, algumas cargas são registradas com expressões genéricas ou com diferentes unidades de medida para o mesmo produto. Deste modo, as considerações aqui apresentadas dizem respeito apenas aos produtos comercializados, sem considerar os volumes.
[9] OSÓRIO, Helen. O império português no sul da América: estancieiros, lavradores e comerciantes. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007, p. 183-223.
[10] O comerciante Nicolau Dreys e o viajante Arsène Isabelle, que visitaram a região na década de 1830, registraram a presença de embarcações de diversas bandeiras estrangeiras no porto de Rio Grande, embora as de propriedade de luso-brasileiros predominassem. DREYS, Nicolau. Notícia descritiva da Província do Rio Grande de São Pedro do Sul. Porto Alegre: IEL, 1961, p. 143; ISABELLE (2006), op. cit., p. 245-46.
[11] QUEIROZ (1987), op. cit., p. 149-51.
[12] SILVEIRA, Josiane Alves da. Rio Grande: portas abertas para as importações de sal no século XIX. Rio Grande: FURG, 2006 [Monografia de bacharelado], p. 27-33. Conforme afirmei anteriormente (Tabela 1), a fonte por mim considerada não apresenta dados completos para todos os anos considerados. Para o ano de 1850 constam apenas 11 registros de saída e 8 de entradas, sendo que nenhuma delas continha sal.
[13] FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998; SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. Na encruzilhada do império: hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (c. 1650-c. 1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.
[14] SILVEIRA (2006), op. cit., p. 34-8.
[15] OSÓRIO (2007), op. cit., p. 221.
[16] BERUTE, Gabriel Santos. Dos escravos que partem para os Portos do Sul: características do tráfico negreiro do Rio Grande de São Pedro do Sul, c.1790- c.1825. Porto Alegre: PPG-História/UFRGS, 2006 [Dissertação de mestrado], p. 38-48ANRJ, Polícia da Corte. Códice 424 (1826-1831). A documentação da polícia da Corte foi consultada através do banco de dados digital FRAGOSO, João Luís Ribeiro; FERREIRA, Roberto Guedes. Tráfico interno de escravos e relações comerciais centro-sul (séculos XVIII-XIX). Rio de Janeiro: Ipea/LIPHIS-UFRJ, 2001 [CD-ROM].
[17] SILVEIRA (2006), op. cit., p. 47-8.
[18] OSÓRIO (2007), op. cit., p. 196-98.
[19] OSÓRIO (2007), op. cit., p. 202-7.
[20] LUCCOCK (1942), op. cit., p. 122.
[21] ISABELLE (2006), op. cit., p. 265.
[22] FRANCO, Sérgio da Costa (org.). Despachos dos Cônsules dos Estados Unidos no Rio Grande do Sul: 1829/1841. Porto Alegre: Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul; Instituto Histórico e Geográfico do Estado do Rio Grande do Sul, 1998, p. 101-37.
[23] Esta é uma característica conhecida dos principais ramos do comércio colonial (tráfico de escravos transporte de animais e abastecimento de alimentos). FRAGOSO (1998), op. cit., p. 187-233; FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico atlântico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 150-54.; CHAVES, Claudia Maria das Graças. Perfeitos negociantes: mercadores das minas setecentistas. São Paulo: Annablume, 1999, p. 113-161; FURTADO, Júnia Furtado. Homens de negócio: a interiorização da metrópole e o comércio das Minas setecentistas. São Paulo: Hucitec, 2006 [2ª Edição], p. 262. No caso do Rio Grande de São Pedro, verifiquei que estes agentes eram de grande importância para o funcionamento tráfico rio-grandense. BERUTE (2006), op. cit., p. 102-111; 125-136.
[24] KUNIOCHI, Márcia Naomi. Crédito, negócios e acumulação. Rio de Janeiro: 1844-1857. São Paulo: FFLCH-USP, 2001 [Tese de doutorado], p. 182-192.
[25] GUIMARÃES, Carlos Gabriel. Bancos, Economia e poder no segundo Reinado: o caso da Sociedade Bancária Mauá, Mac Gregor & Companhia (1854-1866). São Paulo: FFLCH-USP, 1997 [Tese de doutorado], p. 108; 127; 130-32; 157; 161; 171; 197.
[26] SILVEIRA (2006), op. cit., p. 41-2.
[27] LUCCOCK (1942), op. cit., p. 125.
[28] TORRES, Daniel de Quadros. Rio Grande – Pelotas: produção, comércio, redes mercantis e interesses econômicos em meados do século XIX. Rio Grande: FURG, 2006 [Monografia de bacharelado], p. 41-3.
[29] AHRS. “Autoridades Militares”, maços 14, 16, 18, 22, 27, 46, 51. “Marinha” – Praticagem da Barra, maços 22, 23, 24; 27 e 28; Diversos, maço 72, registros 1179, 1134 e 1141.
[30] SILVEIRA (2006), op. cit., p. 39-40.
[31] Josiane da Silveira e Daniel Torres, em suas respectivas investigações, afirmam que havia uma clara divisão entre os negociantes estrangeiros e luso-brasileiros: estes dominavam os produtos voltados para o mercado interno (charque) enquanto aqueles dominavam os do mercado externo (couros). SILVEIRA (2006), op. cit., p. 58; TORRES (2006), op. cit., p. 43.
[32] AHRS. “Autoridades Militares”, maços 14, 16, 18, 22, 27, 46, 51. “Marinha” – Praticagem da Barra, maços 22, 23, 24, 27 e 28; Diversos, maço 72, registros 295, 356, 361, 415, 449, 478, 487, 525, 539 e 979.
[33] Idem, registros 684, 1126, 1151 e 1157.
[34] Idem, registros 282, 648, 829.
[35] BRAUDEL, Fernand. Os jogos das trocas. Civilização material, economia e capitalismo [Volume 2]. São Paulo: Martins Fontes, 1998 [1ª ed., 1979], p. 117-19.
[36] BRAUDEL (1998), op. cit., p. 355-59.


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