sábado, 27 de fevereiro de 2010

Nos traços da modernidade: a representação da imigrante francesa na Revista Illustrada.

Giselle Pereira Nicolau

Bolsista CNPq/UERJ da pesquisa intitulada Francesas no Rio de Janeiro:
das decisões da partida às práticas e representações em terra estrangeira (1861-1914 ), orientada pela Profª. Lená Medeiros de Menezes.


Há tempos, a utilização de jornais e revistas como fonte histórica tornaram-se indispensáveis para o historiador preocupado com os processos sociais e culturais, pois oferecem dados que proporcionam uma reflexão sobre as demandas, gostos e mudanças que se operam no seio da sociedade. No projeto do qual participamos, a Revista Illustrada se constituiu em uma fonte indispensável para pesquisa. Considerada um “verdadeiro arquivo iconográfico, não somente de cantores, como também de artistas de espetáculo ligeiro”1, a revista nos possibilitou tomar contato com as novas relações sociais e práticas culturais que vinham se desenvolvendo na cidade.
No entanto, apesar da pouca tradição, os estudos sobre a imprensa ilustrada e o humorismo carioca e brasileiro, vêm conquistando, nos últimos anos a atenção de estudiosos interessados em analisar esse tipo de representação. Segundo Monica Velloso, historicamente, o humor tendeu a ser considerado como algo menor, indigno de uma reflexão sobre o social. Esse tipo de consideração acerca do humor é um traço contundente na tradição ocidental, onde o conceito de seriedade geralmente se confunde com rigidez e erudição.2
Por ser uma fonte riquíssima e sempre nova, foram analisados todos os exemplares disponíveis do ano da fundação da Revista Illustrada, privilegiando as caricaturas, charges, escritos satíricos e seções como, a “Resenha Teatral”, onde pudemos apreender em certa medida, as novas formas de expressão e comportamentos de uma nova época, e de como as mulheres francesas apareciam por meio destas.
A Revista Illustrada surgiu em 1º de janeiro de 1876 e deixou de existir em 1891. Foi fundada e editada pelo italiano Angelo Agostini, homem que revolucionou a ilustração impressa brasileira. Extraordinário caricaturista, este exímio jornalista assinalou, com a Revista, um dos grandes momentos da Imprensa brasileira. Homem de posições libertárias e anticlericais, Agostini, usou e abusou de sua irreverência em suas obras engrandecidas de um sentido político que, segundo Nelson Werneck:

Foi dos mais expressivos exemplos de como a militância política enriquece, amplia e multiplica o efeito das criações artísticas sendo, ainda, dos mais brasileiros dos artistas que nos conheceram e nos estimaram, porque sentiu compreendeu e expressou não apenas o que era característico entre nós, daí a sua autenticidade, mas aquilo que representa o conteúdo característico, isto é, o popular.3


Entretanto, o momento mais representativo da carreira de Angelo Agostini à frente da Revista Illustrada foi a defesa da campanha abolicionista, o que fez com que seu periódico ficasse conhecido como “a Bíblia da Abolição para os que não sabem ler”, devido as imagens que faziam crítica ao sistema escravista, sendo este entendido pelo autor, como o atraso do Brasil. Por conta de seu posicionamento frente a causa abolicionista, Agostini conquistou a amizade e respeito de muitos que assim como ele, lutavam pelo fim da escravidão. Tão notável fora a sua luta que, em 1888, foi homenageado pela Confederação abolicionista, que nas palavras de Joaquim Nabuco: “O seu título é a mais alta adoção que se possa imaginar: a de uma raça que adota os seus redentores, a de uma raça que perfilha um dos seus criadores.4
Buscando dialogar com as mudanças que se desenhavam na capital federal, possibilitadas pelos lucros do café, dentre elas, o gosto pela novidade e o surgimento da vida noturna no Rio de Janeiro, a Revista Illustrada, por falar a linguagem do novo, rapidamente caiu nas graças do público carioca. Publicada semanalmente, especificamente aos sábados, a revista era vendida a 500 réis o exemplar, com assinaturas anuais, semestrais e trimestrais, havendo variações entre os preços da corte e das províncias. As assinaturas podiam ser tomadas na Rua da Assembléia, 44, onde se encontrava a oficina litográfica à vapor da revista, como também, à Rua do Ouvidor, 65, na famosa Livraria Garnier.
Em sua estrutura, a Revista Illustrada, possui um formato mediano, composta de 4 a 8 páginas, de acordo com as novidades a serem veiculadas. À rigor, eram destinadas 4 páginas para as ilustrações e, mais 4 páginas destinadas as crônicas, ao humor, as seções teatrais, críticas e demais escritos que cumpriam a promessa que Agostini fizera aos seus leitores no 1º dia de existência da revista: “Falar a verdade, sempre a verdade ainda que isso lhe custasse um dente, pondo os pingos nos ii para ver se conseguia conseguir” 5 levar adiante o seu mais audacioso empreendimento.
Entendidas como um traço da modernidade, as caricaturas e charges publicadas pela Revista Illustrada, dotadas de um humor crítico, enfatizavam aspectos da vida cotidiana dos cariocas, questões morais e políticas, problemas sociais e até mesmo, epidêmicos, com destaque para a febre amarela, cujas imagens apareciam com freqüência no primeiro ano de existência da revista. Deste modo, foi possível perceber, por meio das charges, a presença de mulheres francesas sendo expressas em situações polêmicas como o envolvimento dessas mulheres em escândalos políticos, como no caso da circulação de notas em dinheiro falsas pela corte, como podemos ver neste diálogo datado do dia 29 de abril de 1876:

-Depois do descobrimento de notas falsas, os patrões examinam com todo o cuidado o estado da caixa. - As notas de 200$ são viradas e
reviradas.- E sujeitas a um exame minucioso. A gazeta declara que há uma pintasinha no nariz de S.M. Imperador... etc.etc. -Comment ! Vous croyes que j´ai des fausses notes moi? Eh bien Mr. Le Chef je vous invite a venir m´entendre chanter a l´Alcazar. (...)
6

Outra situação que envolvia a participação de francesas nas charges expressas por Agostini, foi uma homenagem à parteira Durocher, a francesa que ajudou a trazer ao mundo muitos cariocas que, devido ao seu profissionalismo, gozou de grande reputação na cidade, tornando-se comadre de muitas senhoras e madrinha de muitas crianças na corte. Neste caso, trata-se de um tipo específico de representação imagética, que segundo Carlos Moura, pode ser entendido como: “o retrato, feito a partir do modelo vivo, relativo a personalidades de destaque no mundo das artes ou da política”.7
Se por um lado foi possível constatar a presença de mulheres francesas por meio das charges impressas pela revista, por outro lado, foi possível encontrá-las em todos os exemplares do ano de 1876, em seções como a “Resenha Teatral” e “Bolhas”. Que, em última instância, refletem as novas idéias, gostos e demandas do público fluminense. Neste caso: o teatro e a fofoca.
A predileção do respeitável público pelo teatro se tornou uma das características mais marcantes da vida social da cidade durante todo o segundo reinado, como podemos compreender, nas palavras de Astrojildo Pereira:

Temos prova disso nas frequentes referencias ao teatro e a gente de
teatro-diz êle - desde os grandes nomes da ópera e do drama até às alegres francesas do Alcazar - que encontramos nas obras ficção dos melhores escritores dêsse período (...)
8

Segundo Hernan Lima, “não era de estranhar que os nossos caricaturistas, sempre à cata de aspectos marcantes da vida social contemporânea, mostrassem o mesmo intêresse pelas coisas dos palcos, ainda mais quando foi sempre tão freqüente entre êles uma predileção das mais vivas pelo gênero” 9. Neste caso, compreendemos todo o cuidado que fora conferido às seções da Revista Illustrada, destinada às discussões teatrais, sendo muitas destas prolongadas até os bastidores, revelando as querelas teatrais, tais como a luta pela preferência do público, bem como, os problemas pelos quais alguns artistas vinham passando neste momento, tal como a má remuneração.
Por meio da “Resenha Teatral” pudemos ficar informados do que se apresentavam nos palcos e qual era a preferência dos cariocas nesta época. Rigorosamente, havia espaço para as novidades de todas as casas de espetáculo da cidade, com destaque para a Phoenix, que trazia para o público, as paródias de operetas francesas, como a La Fille de Marie Angot, assinada por Artur Azevedo; e para o Alcazar Lyrique, casa de espetáculo da Rua da Vala, que sacudiu o Rio de Janeiro “como uma vara verde” 10. As operetas, a cançoneta maliciosa, os bailados e o cancã atraiam jovens noivos e esposos ao teatro, que segundo Elói Pontes, na sua biografia sobre Machado de Assis:

Houve pânico por tôda parte. As mães levaram as mãos à cabeça,
as noivas, esticando beicinhos, tremeram, as espôsas pediram socorros aos
santos de devoções. As francesas! A vida urbana já as conhecia da Rua do
Ouvidor, com suas modas, onde se encontravam as tentações de Paris.
11

Sobre o Alcazar, semanalmente, eram dedicadas linhas e mais linhas da seção teatral, com direito a elogios com relação aos espetáculos e ao desempenho das atrizes francesas, como este comentário do dia 26 de fevereiro de 1876:

Com um bonito poema e linda musica, e esta bem interpretada pela Sra. Rose Marie e pelo Sr. Deroches sem esquecer a Sra. Marie Denis, e estando bem vestida e enscenada a peça, a representação da nova opereta mostra que a empreza faz empenho em conservar seus creditos e os creditos de sua companhia.12

Mesmo quando o Alcazar “fazia fiasco em cena” 13, não faltavam elogios às atrizes que eletrizavam o estabelecimento francês, sendo entendidas muitas das vezes como um atrativo para casa de espetáculos, como podemos perceber no seguinte fragmento, extraído da Revista Illustrada:

...e os sorrisos de Mlle. Leonor Rivero, a mostrarem as trinta
e duas pérolas que lhe são os seus dentes, a elegancia extrema dos seus ricos
vestuarios a desenharem-lhe o esculptural contorno; a voz ampla e descommunal de
Mlle. Vanda; os olhinhos vivos e cubiçosos da Sra. Rita Peyrée; os quebros e
denguices de Sra.Rose Marie; as opulentas formas da Sra. Bellony; todos esses
atractivos continuam a puchar os espectadores para o Alcazar, desde os mais
tolerantes até os mais exigentes, sem exceptuar mesmo os severos folhetinistas.
Fallamos naquellas seducções, e não nos meritos artisticos de cada uma, pois de
certo os severos folhetinistas, não admitindo meritos em que canta a Mme. Angot
e representa o Nhô-Quim, não são lá levados por esses méritos, mas com certeza
por aquel´es.
14

Figuras da modernidade, as atrizes-cortesãs francesas não só deixaram marcas indeléveis na memória de todos aqueles que assistiam às suas apresentações ou acompanhavam sua circulação nas ruas, cafés, confeituras e restaurantes, mas também nas páginas da Revista Illustrada, que em seu primeiro ano de existência caricaturou, comentou e homenageou mulheres que espelharam as marcas de um novo tempo para a cidade, as Francesas no Rio de Janeiro.

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1 Hernan Lima. História da Caricatura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.p. 562.
2 Monica Pimenta Velloso. Modernismo no Rio de Janeiro, Modernismo no Rio de Janeiro: turunas e quixotes. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1996, pp.90/91.
3 Nelson Werneck Sodré, História da Imprensa no Brasil, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966. p. 226.
4 Nelson Werneck Sodré, História da Imprensa no Brasil, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966. p. 228
5 Revista Illustrada, 1° exemplar, dia: 1º de janeiro de 1876.
6 Revista Illustrada, exemplar do dia 29 de abril de 1876.
7 Carlos Moura. A Travessia da Calunga Grande - Três séculos de Imagens sobre o Negro no Brasil (1637-1899), São Paulo, Edusp, 2000, p. 29.
8 PEREIRA, Astrojildo. In: LIMA, Hernani. História da Caricatura no Brasil, p. 559.
9 LIMA, Hernan. História da Caricatura no Brasil, Rio de Janeiro, José Olympio,1963, p. 559.
10 PONTES, Elói. In: LIMA, Hernani. História da Caricatura no Brasil, Rio de Janeiro, José Olympio,1963. p. 557.
11 IDEM, p. 557.
12 Revista Illustrada, exemplar do dia 26 de fevereiro de 1876.
13 Trata-se de uma espécie de jargão utilizado pela Revista, sobretudo na coluna Resenha Teatral para comentar os fracassos encenados nos teatros cariocas.
14 Revista Illustrada, exemplar do dia 12 de fevereiro de 1876.


FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BAUDELAIRE, Charles. Sobre a Modernidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
LIMA, Hernan. História da Caricatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio,1963.
MOURA, Carlos. A Travessia da Calunga Grande - Três séculos de Imagens sobre o Negro no Brasil (1637-1899). São Paulo: Edusp, 2000.
REVISTA ILLUSTRADA, especialmente os números publicados em 1 de janeiro de 1876, 12 de fevereiro de 1876, 26 de fevereiro de 1876 e 29 de abril de 1876 .
SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966.
VELLOSO, Monica Pimenta. Modernismo no Rio de Janeiro: turunas e quixotes. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996.




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