sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

A chegada do outro: Portos, Cidades e Imigração transatlântica

Prof. Dra. Érica Sarmiento da Silva (UERJ)
Jornalista, Doutora em História e Pós-Doutoranda em História



Resumo: Este artigo pretende abordar, de forma sucinta, a chegada da imigração européia à América, enfocando principalmente as duas capitais mais representativas: Rio de Janeiro e Buenos Aires. O crescimento das cidades e os processos de modernização coincidiram com a chegada de milhares de europeus que se constituíram em objeto central das discussões políticas da época.


A chegada do outro: Portos, Cidades e Imigração transatlântica


O início de tudo: os portos e a imigração




O período que se estende da segunda metade do século XIX até a primeira metade do XX foi marcado por uma intensa circulação de pessoas entre Europa e América. O fluxo imigratório, neste momento histórico, foi provocado por conjunturas sócio-econômicas vividas pelos dois continentes. Os fatores de expulsão (necessidade econômica, escassez de trabalho, fuga do serviço militar, entre outros) e os de atração que exerceram os países americanos, com seus recursos naturais e um nascente mercado disposto a receber um grande contingente de mão-de-obra estrangeira, unidos com os mecanismos de informação (agentes de imigração, imigrantes retornados, cartas de familiares), são algumas das causas da imigração européia.
No caso do Brasil, a expansão da economia cafeeira no Estado de São Paulo, nas últimas décadas do século XIX, não só atraiu mão-de-obra estrangeira para as plantações de café, como a própria expansão deste produto gerou uma rede de núcleos urbanos que incentivou a formação de um mercado de produção, consumo e força de trabalho. A imigração subsidiada marcou não só a entrada de milhares de europeus e posteriormente asiáticos, como também marcou a historiografia da imigração. Os fenômenos migratórios passaram a ser analisados desde a perspectiva de uma imigração coordenada às zonas cafeeiras de São Paulo e aos deslocamentos internos das fazendas para as cidades ou para outros estados brasileiros.
Entretanto, outra corrente imigratória, a da imigração espontânea, caminhou paralelamente à subvencionada do Estado de São Paulo, entre os anos de 1890 a 1930, trazendo imigrantes de diferentes procedências para várias cidades brasileiras. Foi nesse período que chegaram ao Brasil o maior número de europeus, principalmente portugueses, italianos e espanhóis. Desse contingente, estavam aqueles que decidiram deixar seu país por conta própria, ou seja, sem o intermédio do governo brasileiro ou de agenciadores. Era uma imigração que se deslocava para os nascentes centros urbanos brasileiros, principalmente o Rio de Janeiro, e que não estava destinada ao trabalho do campo, mas às oportunidades que ofereciam os setores secundários e terciários. Uma imigração que não era formada por grupos familiares, mas por jovens varões que se refugiavam nas redes de solidariedade formadas pelos coletivos que ganhavam representação numérica e econômica na sociedade de acolhida e nas cadeias migratórias responsáveis pela inserção sócio-profissional daqueles que procuravam seu primeiro emprego.
Se o acesso a terra no Brasil era difícil e a agricultura não oferecia os benefícios esperados, as cidades sim ofereciam um setor terciário em expansão e a oportunidade de uma ascensão social que, aparentemente, era mais rápida. Isso não significa que todos aqueles que buscaram oportunidades nas cidades conseguiram o sonho da fortuna, mas tinha, certamente, uma proposta implícita, muito mitificada, de que ali se podia gerar sempre riqueza, ainda que às custas de muito trabalho. Também, dentro dos chamados mecanismos informais (cadeias imigratórias), havia o exemplo daqueles que progrediam e retornavam aos seus países, alimentando a idéia de que “fazer a América” era possível para todos.
O mesmo tipo de imigração urbana, baseada em cadeias migratórias, predominou na Argentina, mas especificamente em Buenos Aires. Segundo o historiador Fernando Devoto, o papel do Estado argentino nas políticas para atrair imigrantes não teve tanta relevância como quis enfatizar a historiografia. Na realidade, elas ocuparam um papel secundário, já que eram os fatores econômicos os que incentivavam a emigração (Devoto, 2003, p.250). Nas últimas décadas do século XIX, a expansão da fronteira agropecuária, que permitiu a produção de milhares de hectares de trigo e de milho, foi acompanhada por um crescimento da rede ferroviária, gerando, consequentemente um processo de atividades conexas (desde o comércio até os serviços) que os imigrantes passaram a ocupar. Inclusive um consistente número de profissionais, médicos, farmacêuticos, professores, músicos, sacerdotes, pessoas com um pequeno capital, que com poucas possibilidades na sociedade de origem, vinham aproveitar as oportunidades que lhes ofereciam as comunidades de imigrantes que necessitavam de seus serviços.
A política de imigração subsidiada, que a argentina tentou imitar do Brasil, se revelou rapidamente como um fracasso. As elites das comunidades imigrantes, já consolidadas no país, como as italianas, e uma parte dos dirigentes argentinos, argumentavam que a imigração espontânea selecionava os mais fortes, enquanto que a promovida pelo Estado recrutava os mais fracos. Na verdade, as cadeias migratórias, já solidificadas, desde a chegada dos pioneiros no século XIX, antes da imigração maciça, constituía uma extensa e forte rede que protegia aqueles estrangeiros recém-chegados, que vinham independentes da tutela do Estado.



A chegada: as cidades e o outro



A História da América Latina é, por sua vez, urbana e rural, mas a cidade é o foco dinâmico dessa história. Foram nas cidades onde se desenvolveram as suas sociedades, suas culturas e onde receberam o impacto das ideologias que elaboraram com elementos próprios e estranhos (Romero, 1999). A cidade latino-americana é o resultado de contínuas combinações e compromissos de muitas facetas do existente com a difícil emergência do novo: a cidade como diferente projeto urbano inicial.
Essas cidades que formam a projeção do mundo europeu, mercantil e burguês, era ao mesmo tempo o enorme e estranho território onde as ideologias se misturavam e surgiam com o crescimento dos seus espaços. Há um complexo intercâmbio entre a transformação material e o simbolismo cultural, entre a reestruturação de lugares e a construção de identidades. Através da construção material se constituem práticas ideológicas que ganham forma com o discurso, com as imagens e as representações.
Segundo Romero (1999), a cidade se fundaria no medo do outro e a história social e política latino-americana seria definida por um conflito perceptível nas cidades que é basicamente cultural. Esse conflito nasce com o próprio crescimento das cidades, onde fervilham as transformações econômicas e as idéias européias, por um lado, enquanto, surge, por outro, a consciência sobre a região, a sociedade em que habita e as suas formas ideológicas.
O conflito que torna dinâmica uma sociedade deve ser buscado nas fronteiras culturais que sempre se produzem quando diferentes universos entram em colisão. A própria criação de uma cultura comum, gera atitudes e discursos racistas, ditatoriais, intransigentes. As imagens oficiais, aquelas que se impõem como dominantes em cada cidade onde se opera um projeto de modernização urbana definido e explicitado, não deixam margens para dúvida ou interpretação sobre a informação que veiculam. Organizam, a seu modo, o espaço, tornando-o simbolicamente eficiente. Leituras oficiais da cidade, que configuram imagens, costumam ser mostradas com aparência de objetividade, apresentando fatos sociais como inquestionáveis. Por exemplo, a idéia construída do Rio de Janeiro como cartão-postal do Brasil, a cidade maravilhosa ou a idéia de Buenos Aires ser a cidade mais européia da América Latina.
Juntamente com a construção das cidades, a reorganização do espaço urbano, estavam os imigrantes e conseqüentemente as políticas imigratórias. Até que ponto a construção e o desenvolvimento de uma cidade implicam também na “reestruturação do outro”? Uma das hipóteses pode ser a partir do momento em que a transformação material evoca novos simbolismos, novos valores. A política imigratória e os discursos oficiais, quando auxiliados pela imprensa, são instrumentos de poder para construir e manipular a imagem do imigrante.
No caso do Rio de Janeiro, durante a primeira década republicana (a partir de 1899), a cidade vive uma fase radical de profundas transformações de natureza econômica, social, política e ideológica. Todas essas transformações estavam estreitamente ligadas à migração de escravos libertos da zona rural para a urbana, à intensificação da imigração e às melhorias nas condições de saneamento (Chaloub, 1984:22).

Nessa época, a cidade começou a crescer de forma contínua. Suas ruas e avenidas despontavam em um rápido ritmo, surgiam novos transportes como o bonde e o automóvel, apareciam os bancos e as indústrias. A demografia carioca também apresentava importantes transformações em sua estrutura populacional, com a chegada de centenas de migrantes rurais e o aumento da imigração. A população do Rio, em 1870, se limitava a 235.381 pessoas, já em 1890 contava com 522.651 e, 15 anos depois, em 1906 eram 811.443 os que habitavam a “cidade maravilhosa”. A população continuou aumentando desenfreadamente e, em 1920, a cifra chega a 1.157.873[1] (Motta, 1982:141). Era necessário reformular a cidade, modernizá-la, segundo os conceitos e as reformas vistas por uma elite, por uma burguesia que só favorecia a sua própria classe e ignorava as camadas sociais que faziam parte desse entorno. Dentro desse contexto, a imigração se intensifica, acompanhando a transição para uma ordem capitalista de uma sociedade constituída por uma massa de ex–escravos analfabetos e despreparados. O aumento do custo de vida era agravado pela imigração que ampliava a oferta de mão-de-obra e acirrava a luta pelos escassos empregos disponíveis (Carvalho, 1987: 21).
No início do século XX, na administração do Prefeito Pereira Passos, foram realizadas profundas mudanças na urbanização carioca, em nome da renovação material e moral dessa sociedade. A população pobre, concentrada nos cortiços e vilas da cidade, os mendigos e qualquer outro indivíduo que estivesse impedindo as obras de renovação moral, seja imigrante, seja nativo, seria “varrido” da cidade. Para evitar que essa massa de ex-escravos, homens considerados sem justiça e sem moral pelas elites-, desrespeitassem a ordem social e os bons costumes haveria que reprimir seus vícios, educando-os através da repressão e da violência. Surgiram os chamados “cidadãos indesejáveis”. Aqueles homens que não se submetessem a essa nova ordem do trabalho seriam punidos e taxados de indivíduos promíscuos, desordeiros e vadios.
Os imigrantes não estavam livres de serem excluídos da população. Na nova ideologia do trabalho, os estrangeiros não poderiam ser esquecidos, já que constituíam, neste momento, mais de 20% da população carioca. Na Constituição Republicana de 1891, foram mencionados casos de expulsão a qualquer estrangeiro que ameaçasse a segurança nacional, como, por exemplo, através da manifestação na imprensa e o direito de representação de livre associação. Aqueles que estivessem participando em jornais anarquistas e em movimentos ou associações operárias seriam expulsos do país. Em 1907, a lei de expulsão de estrangeiros concretizou este quadro com a obrigatoriedade de deportar todos os indivíduos improdutivos (vagabundos, bêbados, desempregados) e também os que exerciam atividades ilícitas, ou seja, cáftens[2] e ladrões comuns.
A imprensa da época relatou os episódios vividos pelos imigrantes inseridos nesse contexto carioca:

“Por maior que seja a hospitalidade que oferecemos a todos os estrangeiros que procuram o Brasil; por mais premente que seja a necessidade de incrementarmos o povoamento do nosso solo, não poderíamos ir ao extremo de transigir, eternamente com os imigrantes que não sabem ou não querem corresponder ao acolhimento amigo que lhes dispensamos e, cuja permanência, entre nós, passa assim, a ser, de fato, indesejável”. (Jornal O Paiz, 19/09/1917)

Com o título “Os Indesejáveis”, o jornal O Paiz abre a sua primeira página, dedicando umas quantas linhas aos elementos estrangeiros vindos no “enxurro das imigrações desordenadas”. Começava, assim, uma batalha que envolvia imprensa, polícia, autoridades estrangeiras, políticos, imigrantes e trabalhadores nacionais. Todos envolvidos na “limpeza urbana” do Rio de Janeiro, iniciada com o Prefeito Pereira Passos, no ano de 1902, que predicava um país civilizado e moderno, livre de toda a sujeira material e moral.
Para combater essa massa de indivíduos que não contribuíam para a ordem e o progresso foi criada a Lei dos Indesejáveis no ano de 1907. Essa Lei marcou a imagem do estrangeiro na cidade, dividindo opiniões que oscilavam entre o discurso favorável a uma imigração branca e outro, xenófobo, que transformava os estrangeiros em bode expiatório da criminalidade social. Lená Menezes de Medeiros (1996), na obra mais representativa sobre o tema, Os Indesejáveis: desclassificados da modernidade, dividiu os inimigos do cotidiano carioca em dois mundos: o do trabalho (anarquista e marxistas) e o do crime ( vadios, mendigos, jogadores, ébrios, ladrões e cáftens). Entre os anos de 1907 e 1930 aparecem 1133 casos de processos de expulsão de estrangeiros. Desse total, 366 eram portugueses, 165 espanhóis, 164 italianos, 63 russos, 51 franceses, 50 argentinos, entre outros.

“De 1917 a 1930, os indesejáveis foram tema constante do noticiário jornalístico, legitimando discriminações de toda espécie. Numa cidade na qual pelo menos 1/5 da população era estrangeira, as atitudes de reação xenófoba se fizeram presentes em inúmeros estereótipos. As representações do galego e do português como ignorantes; do russo e/ou judeu como cáftens; do chinês como vendedor de ópio e do italiano como vigarista marcaram a época” (Medeiros de Menezes, 1996:190)

Marcos Luiz Bretas, no seu livro A Ordem na Cidade. O exercício cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro: 1907-1930, trabalha com o período cronológico que corresponde aos processos de expulsão- 1907 a 1930- e que também faz parte da primeira imigração massiva. Referindo-se à cidade do Rio de Janeiro após as reformas urbanísticas de Pereira Passos, que é foco de interesse da citada obra, ele afirma que “a nova cidade europeizada fazia jus a algo melhor do que seus velhos habitantes. Expulsá-los de suas moradias não era o suficiente: urgia livrar o centro da capital do espetáculo de sua miséria. Mas eles não podiam ser eliminados pura e simplesmente, pois forneciam a mão-de-obra barata indispensável à elite” (Bretas, 1997:21). Com essa nova remodelação da cidade, outros papéis e funções no cotidiano começam a ser revistos. O papel da polícia, por exemplo, na imposição da ordem e no controle dessas massas de trabalhadores pobres cresceu, como conseqüência do temor à desordem e à insegurança pública. Prostituição, crimes, vadiagens e movimentos sindicais não combinavam com a imagem glamourosa que se queria construir do Rio de Janeiro. A imagem do imigrante trabalhador, edificador, se unia à idéia de marginalidade e de elementos perigosos à construção do país.
Na Buenos Aires do final do século XIX/começo do século XX, o panorama não era diferente. A imagem dos imigrantes mudava com a entrada do novo século. A mudança de percepções e de mentalidade das elites, de imigrante trabalhador a de potencialmente perigoso, se revelou com as mudanças no sistema eleitoral e na permanência dos estrangeiros (Alsina 1910; Bertoni 1996; Núñez Seixas 2002). No ano de 1901, o Ministro do Interior, Joaquín V. González propôs um projeto de reforma onde todos aqueles estrangeiros que fossem proprietários tivessem direito a votar, mesmo que não fossem naturalizados argentinos. Entretanto, o Congresso impediu a continuação do projeto, porque, naquela conjuntura histórica, era muito mais importante combater os elementos agitadores que beneficiar-se dos votos dos estrangeiros. No ano seguinte, a Lei de Residência refletia o novo clima do país em relação aos imigrantes: qualquer estrangeiro considerado perigoso poderia ser expulso e o país podia impedir a entrada de qualquer imigrante sem a necessidade de ordem judicial. Era a Lei dos Indesejáveis na Argentina, posteriormente complementada pela Lei de Defesa Social de 1910. O nascimento do movimento operário argentino é inseparável do fenômeno da imigração, pois seus protagonistas são os imigrantes europeus que receberam de forma maciça, desde 1880, principalmente imigrantes italianos, espanhóis e franceses. (Suriano 2001). Igualmente também era inseparável o debate sobre os perigos morais da imigração, no que diz respeito a forma como a opinião pública associava, muitas vezes, a prostituição e a rede de tráfico de brancas com a imigração européia (Guy 1991).
A Argentina adotou uma política de restrição à imigração em base às características individuais do potencial dos imigrantes e não segundo o sistema de cotas por grupo nacional. Em 1919, o governo do presidente Hipólito Yrigoyen pôs em vigor um decreto de seu antecessor Victorino de La Plaza, que exigia aos futuros imigrantes três certificados (médico, antecedentes penais e outro que atestasse que o imigrante não vivia como mendigo). Esse sistema (o individual) difere de países como o Brasil e Estados Unidos que fixavam as cotas segundo o grupo nacional (Devoto, 2003: 170).
À construção da identidade nacional, em conflito com uma sociedade heterogênea, apareceram outras questões no Rio de Janeiro e na Buenos Aires do início do século XX: a emergência de uma problemática social com a aparição de uma crescente conflitividade no mercado de trabalho e de uma paralela violência política alternativa, por parte de grupos ativistas anarquistas que eram facilmente identificados como resultados da imigração sem limites, descontrolada.


Tempos difíceis: A política imigratória em um governo não democrático



Essa imagem do outro através do discurso oficial, continua ganhando novas formas, segundo o tipo de governo. Depois da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a economia nacional começou a crescer devido ao arranque industrial, principalmente após os anos 30. Com a entrada de Getúlio Vargas no poder, em 1930, o Brasil avançou seu processo de constituição enquanto Estado nacional e capitalista, que culminou com a ditadura de Vargas, em 1937, o chamado Estado Novo. O empresariado nacional buscou uma participação efetiva no aparelho do Estado, na elaboração de um programa industrialista e na construção de um discurso que lhe fosse próprio e auto-identificador. Para conseguir tais objetivos, a elite industrial se apropriara de categorias produzidas pelos teóricos do pensamento autoritário, redefinindo-as como suporte de modernização, chegando mesmo a fazer do Estado forte e integrador uma de suas premissas.
Getúlio Vargas utiliza os meios de comunicação a favor do Estado para publicar o perfil do imigrante desejável à contribuição do desenvolvimento do país. Por exemplo, a Revista de Colonização e Imigração, nas décadas de 30, 40 e 50, onde vários intelectuais divulgam suas idéias xenófobas acerca de determinados grupos de imigrantes. O conteúdo da revista centrava-se em assuntos diretamente relacionados à imigração, reproduzindo artigos publicados pela grande imprensa. Durante o Estado Novo, ela foi porta-voz de um pensamento racista, legitimador da política discriminatória do governo Vargas em relação ao estrangeiro:

“Ao Brasil se impõe o dever de acelerar o processo de adaptação dos estrangeiros e seus descendentes, a sua aculturação, a sua integração, numa certa consciência política ou sensibilidade coletiva, fora da qual o indivíduo será uma negação dentro do Estado”.

Revista de Imigração e Colonização,
janeiro de 1941, p.21


Nesse período de crescimento nacional, de desenvolvimento das indústrias, das cidades, continuava-se buscando o imigrante ideal, considerado imprescindível para o progresso do país, como o agricultor, o técnico e o operário qualificado. O que importava, em um primeiro momento, era a sua capacidade em desempenhar funções ou transmitir conhecimentos que atendessem aos interesses do país adotivo. No entanto, aparece como sendo de extrema importância a questão do potencial reprodutor do imigrante, Fala-se em braços para a lavoura e a indústria, mas também em “sangue novo” ou “plasma” de reprodução, acreditando-se que os imigrantes viriam “aduzir sangue novo à nossa etnia”.

“Cabe ao Decreto-lei n.406, de 4 de maio de 1938, o início dessa obra. Pela
primeira vez, o poder público declarou que ia intervir na composição étnica da
população e inscreveu a palavra assimilação no pórtico da lei.
O Governo
reserva-se o direito de limitar ou suspender, por motivos econômicos ou sociais,
a entrada de indivíduos de determinadas raças ou origens (...)
Não se trata
mais de considerar o estrangeiro apenas como braço, mas como um elemento de
composição racial”.

Revista de Imigração e Colonização, janeiro de 1941, p.26


Através do discurso oficial contido na Revista de Imigração e Colonização, percebemos um processo de desumanização do imigrante, tratado como um objeto, um elemento portador de características que podem ou não interessar ao país receptor. Essa desumanização torna-se evidente quando constatamos os termos acionados constantemente para designar o imigrante: alienígena, bom ou mau elemento, desejável ou indesejável. Nesse sentido, o imigrante apenas interessava quando vinha compactuar com a criação de uma identidade nacional, tomando parte na construção do futuro trabalhador brasileiro, e não como elemento de desagregação e discórdia. Por exemplo, nas décadas de 30 e 40, condenava-se a imigração de judeus, japoneses e alemães, considerados elementos inassimiláveis e perigosos para a segurança nacional. Dava-se preferência aos de origem latina: portugueses, italianos e espanhóis, por serem vistos como os mais próximos culturalmente, além de mais assimiláveis (Peres, 1998: 57). Criam-se medidas de proteção ao trabalhador nacional que acabaram por repercutir na imigração. Na Constituição do dia 10 de novembro de 1930 estabelece-se o regime de cotas para a imigração espontânea, ou seja, a corrente imigratória não podia exceder o limite de 2% sobre o total dos respectivos nacionais.
No âmbito nacional é onde se desenvolvem fatores significativos, como as políticas imigratórias. Além disso, também se constrói um espaço nacional: o lingüístico e identitário, sobretudo através da escola, dos ritos e cerimoniais patrióticos; o administrativo, através da criação de instituições públicas e de uma burocracia estatal. E também o espaço cultural, criado através da expansão e uniformização de certos mitos que permitiam a construção de um imaginário nacional.
Com significativa ocorrência, o primeiro passo para a auto-definição é a definição do outro de modo “excludente” e estereotipado. A desqualificação do outro parece ser uma ferramenta para a qualificação do “nós”, para a construção do sentido de pertencimento. O processo de representar a diferença é uma prática política e a desqualificação gera poder para os sujeitos do próprio lugar.
O antropólogo argentino Nestor García Canclini, um dos referentes contemporâneos mais importantes que trata sobre a questão da cultura e identidade latinoamericana, que defende a multiculturalidade ou a hibridização cultural, costuma dizer que se estabeleceu que os habitantes de um certo espaço deviam pertencer a uma só cultura homogênea e ter por tanto uma idéia cínica de identidade diferenciada e coerente. Quer dizer, ter uma identidade, significa ser parte de uma nação, de um espaço físico onde foram construídos os símbolos que identifiquem todos sob um mesmo código, objetos e costumes que diferenciem essas pessoas das demais. O historiador Eric Hobsbawn também fala a mesma coisa sobre a construção das nações, a consciência inventada do sentido de nação. Existe aquele sentimento de pertencer ao mesmo lugar, que, por outro lado, provoca o sentimento oposto, o de não pertencimento, o de exclusão. O que quero dizer é que como determinadas construções, ideologias políticas, excluem as pessoas da sociedade, através da formação da sua cultura, utilizando os seus elementos identitários para excluir o outro.
Depois de percorrermos dois períodos da história carioca do século XX, muito dos argumentos e acontecimentos utilizados voltam a se repetir. A imigração volta a ser um tema que ocupa espaço nos principais jornais e também nas agendas políticas das democracias ocidentais. O fenômeno migratório é cíclico e atualmente se move em direção ao que conhecemos como Primeiro Mundo. Como a trajetória mudou seu rumo, as preocupações e as políticas excludentes também mudaram de localização geográfica, mas não mudaram a sua essência e a forma de tratar a imigração. A desqualificação do outro para reforçar o nosso sentimento de pátria não mudou. Senão as políticas européias atuais não estariam assumindo cada vez mais posturas direitistas e xenófobas.
Através da história analisamos fatos passados que acabamos identificando como contemporâneos. Os comportamentos sociais, as políticas imigratórias e a atuação da mídia voltam a se repetir, como um espelho do passado. Como diz Peter Burke (1992:15): “nossas mentes não refletem diretamente a realidade. Só percebemos o mundo através de uma estrutura de convenções, esquemas e estereótipos, um entrelaçamento que varia de uma cultura para a outra”.
Se conseguirmos perceber a nossa história como algo presente, como algo que damos continuação ou que voltamos a repetir, é porque a História está cumprindo a sua função, a de fazer com que mantenhamos um diálogo permanente entre o que fomos e o que somos e, dessa forma, tentar lançar um novo olhar sobre as questões prioritárias, sobre o que pode vir a ser.
Os verdadeiros protagonistas da experiência, os imigrantes, como todos os sujeitos históricos que não pertencem a uma visão elitista de ver a história, surpreendem por seu silêncio, pela difícil busca e apreensão de suas histórias particulares. É difícil analisar e documentar essas vidas (e quanto a esse aspecto, refiro-me também aos dias atuais) porque é sempre difícil analisar de modo adequado as reações e os comportamentos das massas, sem nos livrarmos desses esquemas e estereótipos construídos desde cima, interceptados pelos meios de comunicação e absorvidos por nós cidadãos comuns.

O conhecimento da nossa história e da nossa identidade através do outro


A importância dos estudos migratórios para a compreensão das sociedades latino-americanas é um fato inegável. Quando se estuda a história contemporânea de cidades como Buenos Aires ou Rio de Janeiro e os processos de modernização dessas capitais, é imprescindível conhecer a historiografia da imigração e os grupos de estrangeiros que chegaram de forma espontânea ou subsidiada pelos governos, na “enxurrada” da imigração massiva. Sem esses dados, a história do movimento operário não existiria, as lideranças sindicais ficariam órfãs, os bairros centrais estariam quase desabitados, os pequenos comércios e hotéis, que eram monopolizados pelos portugueses e galegos (esses últimos dominavam tanto no caso do Rio de Janeiro como no de Buenos Aires) estariam com as portas fechadas. A imagem do imigrante não é somente uma percepção, um estereótipo, ela é a história e a memória dessas cidades.
Nas décadas da primeira imigração maciça, o estrangeiro foi, ao mesmo tempo, o elemento mais desejado, o “braço” que faltava para a lavoura, a mão-de-obra para o desenvolvimento das cidades e, também, aquele que competia com os nacionais, que conseguia os melhores postos de trabalho, e o que subvertia a ordem, que trazia ideologias perigosas às classes nacionais. Todas as mudanças de mentalidade, de governos, de alguma forma, influenciaram na vida dos imigrantes e estes, por sua vez, influenciaram nas mudanças das sociedades de recepção.
Os estudos comparativos são instrumentos importantes também na contribuição dos vazios bibliográficos que se apresentam em alguns setores acadêmicos. A historiografia argentina sobre a imigração, por exemplo, apresenta uma rica área teórica, com estudos de fontes e novas metodologias sobre o tema que podem auxiliar no desenvolvimento dos estudos migratórios brasileiros. [3]
A importância desses estudos remete-nos ao conhecimento da nossa própria política e da questão da identidade. A posição em relação ao imigrante indesejável ou desejável, no começo do século XX,, foi um tema que teve uma projeção mediática e social muito grande, envolvendo personalidades públicas, políticos, jornalistas e cidadãos. E o surgimento de comportamentos racistas, xenófobos, em relação a determinados grupos de imigrantes, está relacionado, de certa forma, ao tipo de país que as elites queriam construir. A identidade coletiva, o sentimento de nacionalidade, num país formado por uma imigração tão recente como o Brasil e a Argentina, não poderia estar desvinculada da imagem do estrangeiro. Em países onde a idéia de nação, parte, muitas vezes, de projetos autoritários, o imigrante poderia ser considerado um entrave ao desenvolvimento da política nacional.

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BIBLIOGRAFIA

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BRETAS, Marcos Luiz. Ordem na cidade. O exercício cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro:1907-1930. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
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BURKE, Peter. A escrita da história. Novas perspectivas. São Paulo, UNESP, 1992.
CANCLINI, Nestor García. Consumidores e cidadãos. Rio de Janeiro, UFRJ, 2006.
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DEVOTO, Fernando. Historia de la inmigración en la Argentina. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 2003.
GONZÁLEZ MARTÍNEZ, Elda. La inmigración esperada: la política migratoria brasileña desde João VI hasta Getúlio Vargas. Madrid, Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 2003.
HOBSBAWM, Eric. Nações e nacionalismo desde 1780. São Paulo, Paz e Terra, 2004.
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MENEZES, Lená Medeiros. Os indesejáveis: desclassificados da modernidade. Protesto, crime e expulsão na Capital Federal (1890-1930). Rio de Janeiro, EdUERJ, 1996.
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[1] Mary Hesler de Mendonça (1982:141) alerta sobre a imprecisão dos dados dos censos do Rio de Janeiro dos anos de 1906 e 1920, alegando que entre os dois censos, para o mesmo ano, os resultados não correspondem. Por exemplo, a população do Rio para o ano de 1872 está registrada nos dois censos com diferentes resultados. As estatísticas oficiais sempre contêm uma porcentagem de erros.

[3] Por exemplo, é o caso da Revista de Estudios Migratorios Latinoamericanos, publicada em Buenos Aires, que apresenta excelentes artigos sobre a temática da imigração.

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